O neon verde do velho Hotel La Guardia estava quase todo encoberto pela neblina, comum naquela época do ano, aquela hora da madrugada. Visto assim, de longe, o letreiro do Hotel parecia um fogo verde tentando ganhar vida no topo do prédio do antigo Hotel. Ele subia a rua e olhou ainda mais uma vez, no alto, o fogo verde tentando ganhar vida, enquanto dava a última tragada no cigarro. Levantou a gola do casaco, enquanto seus olhos se enchiam de água. O vento, talvez. Continuou subindo, vencendo o vento. Passou em frente a um boteco, o único aberto aquela hora, naquela rua deserta. Ouviu a risada de um velho no balcão e o som de um rádio mal sintonizado. Ainda pôde ouvir o final de uma notícia, que dava conta de uma sepultura violada, no cemitério da cidade. Loucuras de um mundo perdido. Veio um calor lá de dentro que quase o fêz parar. E o velho no balcão parava de rir. Mas ele sequer olhou pro lado. Seguiu, subindo a rua, quase vencido pelo vento. Enxugou os olhos e parou em frente à entrada do Hotel, com sua porta de madeira envelhecida, pintada num improvável verde musgo. Olhou para cima, mas o neom verde não era visível daquele ângulo. Mas pôde ver o topo do prédio, agora totalmente encoberto pela densa névoa que parecia querer engolir o prédio inteiro. Uma corrente gelada de ar correu pela calçada, passando por ele. Olhou o relógio. Chegara na hora marcada. Acendeu outro cigarro e esperou, impaciente, tirando o chapéu. Em poucos segundos a velha porta verde musgo se abriu, devagar. Uma figura miúda, negra, como um gordo besouro, começou a descer os minúsculos quatro degraus até a calçada. O rapaz jogou longe o cigarro e apertou nervosamente o chapéu entre as mãos, enquanto o besouro se aproximava. Ele pôde sentir um cheiro de mofo quando a pequena figura parou à sua frente.
– Pontual. O besouro elogiou.
A voz nasalada e calma do minúsculo homem fêz um pânico repentino percorrer o corpo do rapaz, já quase congelado.
– A noite está muito fria, eu sei. Por isso, vamos ser breves.
– Tudo saiu de acordo?
– Absolutamente. Parece que o silêncio que pesou sobre a cidade no dia de ontem, deixou todos congelados, paralisados. O senhor percebeu que quase ninguém saiu de casa esta noite?
– Não.
– Natural, o senhor está muito abalado. Mas não se preocupe. Fiz tudo conforme o seu pedido. E aqui estamos nós.
O rapaz procurava algo nos bolsos do casaco preto, enquanto o besouro abria um sorriso medonho esticando o fino bigode, dando-lhe um aspecto de quase demônio.
– O seu pagamento, conforme o combinado.
O pequeno homem apanhou nas pequenas mãos o envelope robusto e deixou escapar um leve arrôto de puro contentamento. Os pequenos olhos pretos brilharam e ele finalmente olhou nos olhos do assustado rapaz.
– Eu conheço a sua família desde muito antes do senhor nascer. O senhor sabe. Eu sei que não sou bem quisto pelo povo daqui, essa gente mesquinha que tem medo da própria sombra. Mas, talvez por isso mesmo o senhor tenha me procurado.
Apesar do vento frio, o rapaz começava a suar e a olhar em volta, aflito por encontrar alguma testemunha daquele encontro. Mas o besouro tinha razão. Não havia ninguém pelas ruas. A cidade estava morta.
– Esta quantia é o suficiente para que você vá pra bem longe daqui, como é do seu desejo.
– Eu sou muito grato ao senhor. Cumpri a minha tarefa, mas com profundo pesar, o senhor esteja certo disso. Diz o besouro, entregando-lhe uma chave de um quarto do La Guardia.
– Sou eu que devo lhe agradecer...
O rapaz fecha enfim o casaco preto e colocando o chapéu, sobe os quatro pequenos degraus em direção ao interior do Hotel. Quando o besouro lhe adverte, ainda com a voz muito calma, mas firme.
– Não se preocupe com o porteiro desta noite. Ele está nos fundos do Hotel e se acordar, só será em dia alto, amanhã!
O rapaz não respondeu. Com um leve aceno de cabeça, concordou e prosseguiu, abrindo a porta verde-musgo.
– Outra coisa! Uma última coisa, doutor.
– O que é desta vez?
– Eu sei que já conversamos sobre isso e o senhor sabe que o meu dever é cumprir aquilo que combinamos. E eu o fiz. Com um grande pesar, mas o fiz. Mas o senhor perdoe minha insistência. Eu me preocupo com o que pode acontecer. Se esta gente sabe que o ajudei...
– Isso não vai acontecer. Pelo que vejo você desempenhou muito bem o seu papel. Desapareça daqui e não volte nunca mais. Quando notarem a sua ausência, já será tarde demais.
– Mas doutor, o que o senhor pretende fazer?
– Eu havia proibido perguntas, esqueceu? A sua parte foi cumprida. E a minha também. Adeus!
Entrou rápido no Hotel, antes que o besouro o impedisse mais uma vez. Passou pela pequena e deserta recepção ao lado das escadas, ganhando silenciosamente o estreito corredor do Hotel. Abriu a porta do quarto e um cheiro de terra molhada invadiu suas narinas, enquanto ele acendia o pequeno abajur ao lado da cama. E ele finalmente a viu, linda, sobre a cama. Sentou ao seu lado, afagou seus cabelos e uma onda incontrolável de lágrimas brotaram dos seus olhos enquanto ele desabava sobre o corpo imóvel daquela mulher. Cego, louco, alucinado, lembrou, numa fração de segundos, tudo que o levara até ali. Eles se casariam no dia anterior. Mas ela, acometida por um mau súbito, morrera enquanto dormia, um dia antes da data marcada. Diante das famílias paralizadas, ele acompanhou, sem muita reação, todos os procedimentos que se seguiram. Apenas na volta do enterro, sozinho em seu quarto, diante da sua roupa de noivo ainda sobre a cama, é que ele se entregou por completo ao delírio e a loucura que a dor lhe oferecia. Planejou tudo em silêncio, sozinho, perdido em sua dor. Não chorava mais. Pensava nela. Estaria novamente com ela. Os dois juntos. Como sempre sonharam. Contratou furtivamente o besouro, e este lhe devolve a noiva recém-sepultada, de acordo com as suas ordens de viúvo e insano. Ali, mais uma vez do seu lado, finalmente ele sorriu, depois de tanto chorar. Não tinha mais forças. Queria apenas dormir, para sempre, em silêncio, abraçado a ela.
– Este é um repost (original de 2008), atendendo a pedidos.