Caía a tarde feito um viaduto

Enquanto te chamam e te convidam, você não dá uma trégua ao oráculo invisível que você diz existir sobre sua cabeça e dispara as sempre frequentes perguntas: Por que esse tempo todo? Por que esta merda toda? Ficou o trema em frequência ou caiu também? Você começa a se equilibrar em chás de melissa à noite, livros à noite, escritas à noite. Se toca você não atende. Se não toca você não entende. Você se esqueceu também da conta do telefone? Ah, não.

Hotel La Guardia


O neon verde do velho Hotel La Guardia estava quase todo encoberto pela neblina, comum naquela época do ano, aquela hora da madrugada. Visto assim, de longe, o letreiro do Hotel parecia um fogo verde tentando ganhar vida no topo do prédio do antigo Hotel. Ele subia a rua e olhou ainda mais uma vez, no alto, o fogo verde tentando ganhar vida, enquanto dava a última tragada no cigarro. Levantou a gola do casaco, enquanto seus olhos se enchiam de água. O vento, talvez. Continuou subindo, vencendo o vento. Passou em frente a um boteco, o único aberto aquela hora, naquela rua deserta. Ouviu a risada de um velho no balcão e o som de um rádio mal sintonizado. Ainda pôde ouvir o final de uma notícia, que dava conta de uma sepultura violada, no cemitério da cidade. Loucuras de um mundo perdido. Veio um calor lá de dentro que quase o fêz parar. E o velho no balcão parava de rir. Mas ele sequer olhou pro lado. Seguiu, subindo a rua, quase vencido pelo vento. Enxugou os olhos e parou em frente à entrada do Hotel, com sua porta de madeira envelhecida, pintada num improvável verde musgo. Olhou para cima, mas o neom verde não era visível daquele ângulo. Mas pôde ver o topo do prédio, agora totalmente encoberto pela densa névoa que parecia querer engolir o prédio inteiro. Uma corrente gelada de ar correu pela calçada, passando por ele. Olhou o relógio. Chegara na hora marcada. Acendeu outro cigarro e esperou, impaciente, tirando o chapéu. Em poucos segundos a velha porta verde musgo se abriu, devagar. Uma figura miúda, negra, como um gordo besouro, começou a descer os minúsculos quatro degraus até a calçada. O rapaz jogou longe o cigarro e apertou nervosamente o chapéu entre as mãos, enquanto o besouro se aproximava. Ele pôde sentir um cheiro de mofo quando a pequena figura parou à sua frente.
– Pontual. O besouro elogiou.
A voz nasalada e calma do minúsculo homem fêz um pânico repentino percorrer o corpo do rapaz, já quase congelado.
– A noite está muito fria, eu sei. Por isso, vamos ser breves.
– Tudo saiu de acordo?
– Absolutamente. Parece que o silêncio que pesou sobre a cidade no dia de ontem, deixou todos congelados, paralisados. O senhor percebeu que quase ninguém saiu de casa esta noite?
– Não.
– Natural, o senhor está muito abalado. Mas não se preocupe. Fiz tudo conforme o seu pedido. E aqui estamos nós.
O rapaz procurava algo nos bolsos do casaco preto, enquanto o besouro abria um sorriso medonho esticando o fino bigode, dando-lhe um aspecto de quase demônio.
– O seu pagamento, conforme o combinado.
O pequeno homem apanhou nas pequenas mãos o envelope robusto e deixou escapar um leve arrôto de puro contentamento. Os pequenos olhos pretos brilharam e ele finalmente olhou nos olhos do assustado rapaz.
– Eu conheço a sua família desde muito antes do senhor nascer. O senhor sabe. Eu sei que não sou bem quisto pelo povo daqui, essa gente mesquinha que tem medo da própria sombra. Mas, talvez por isso mesmo o senhor tenha me procurado.
Apesar do vento frio, o rapaz começava a suar e a olhar em volta, aflito por encontrar alguma testemunha daquele encontro. Mas o besouro tinha razão. Não havia ninguém pelas ruas. A cidade estava morta.
– Esta quantia é o suficiente para que você vá pra bem longe daqui, como é do seu desejo.
– Eu sou muito grato ao senhor. Cumpri a minha tarefa, mas com profundo pesar, o senhor esteja certo disso. Diz o besouro, entregando-lhe uma chave de um quarto do La Guardia.
– Sou eu que devo lhe agradecer...
O rapaz fecha enfim o casaco preto e colocando o chapéu, sobe os quatro pequenos degraus em direção ao interior do Hotel. Quando o besouro lhe adverte, ainda com a voz muito calma, mas firme.
– Não se preocupe com o porteiro desta noite. Ele está nos fundos do Hotel e se acordar, só será em dia alto, amanhã!
O rapaz não respondeu. Com um leve aceno de cabeça, concordou e prosseguiu, abrindo a porta verde-musgo.
– Outra coisa! Uma última coisa, doutor.
– O que é desta vez?
– Eu sei que já conversamos sobre isso e o senhor sabe que o meu dever é cumprir aquilo que combinamos. E eu o fiz. Com um grande pesar, mas o fiz. Mas o senhor perdoe minha insistência. Eu me preocupo com o que pode acontecer. Se esta gente sabe que o ajudei...
– Isso não vai acontecer. Pelo que vejo você desempenhou muito bem o seu papel. Desapareça daqui e não volte nunca mais. Quando notarem a sua ausência, já será tarde demais.
– Mas doutor, o que o senhor pretende fazer?
– Eu havia proibido perguntas, esqueceu? A sua parte foi cumprida. E a minha também. Adeus!
Entrou rápido no Hotel, antes que o besouro o impedisse mais uma vez. Passou pela pequena e deserta recepção ao lado das escadas, ganhando silenciosamente o estreito corredor do Hotel. Abriu a porta do quarto e um cheiro de terra molhada invadiu suas narinas, enquanto ele acendia o pequeno abajur ao lado da cama. E ele finalmente a viu, linda, sobre a cama. Sentou ao seu lado, afagou seus cabelos e uma onda incontrolável de lágrimas brotaram dos seus olhos enquanto ele desabava sobre o corpo imóvel daquela mulher. Cego, louco, alucinado, lembrou, numa fração de segundos, tudo que o levara até ali. Eles se casariam no dia anterior. Mas ela, acometida por um mau súbito, morrera enquanto dormia, um dia antes da data marcada. Diante das famílias paralizadas, ele acompanhou, sem muita reação, todos os procedimentos que se seguiram. Apenas na volta do enterro, sozinho em seu quarto, diante da sua roupa de noivo ainda sobre a cama, é que ele se entregou por completo ao delírio e a loucura que a dor lhe oferecia. Planejou tudo em silêncio, sozinho, perdido em sua dor. Não chorava mais. Pensava nela. Estaria novamente com ela. Os dois juntos. Como sempre sonharam. Contratou furtivamente o besouro, e este lhe devolve a noiva recém-sepultada, de acordo com as suas ordens de viúvo e insano. Ali, mais uma vez do seu lado, finalmente ele sorriu, depois de tanto chorar. Não tinha mais forças. Queria apenas dormir, para sempre, em silêncio, abraçado a ela.

– Este é um repost (original de 2008), atendendo a pedidos.

U tópicos

• Não, ela não é do tipo de garota que se veste de tons pastéis. Até ai tudo bem, há tantas rockers de boutiques nos circuitos das artes. Mas não é só o vestido preto dela que se sobressai. Tem aqueles olhos mortos de quem quer te comer vivo. E ela ainda palita os dentes.


• E se ele, embora tímido, foi mandado pelos pais a estudar filosofia em Paris. Seria muita sorte que não se tornasse viado. E fosse sim, o tipo preferido de presa a cair nos dentes dela. Mas ele tinha um segredo, guardado nas duas mangas do Armani. Treinara com umas feras, num circo em Moscou.

• Talvez eles se encontrassem um dia, na Praça da Sé.

Pra quê

Pra quê dizer que te adoro? Te adoro. Te adoro, porra. Pra quê? Pra que você enfim saiba? Que te adoro? Que te esperaria em qualquer lugar. Esquina. Calçada. Último andar do arranha-céu mais alto. Pra quê? Pra que se sentisse a última coisa mais que todas querida. Desejada. Apunhalada. Pra quê? O esfaqueado sou eu. Dizer que te vejo na rua, do outro lado. Me escondo. Só pra te ver de longe passar. Calor, roupas leves, cabelos, riso, conversas com alguém do lado. Que não vejo. Só você. Dizer que te encheria de flores, rosas, designs, aquilo tudo que eu sei que você gosta. Que te ouviria as maiores injúrias, insultos, calúnias, humilhações, como se ouvisse a maior e mais linda melodia do maior dos gênios da música. Para os meus ouvidos, somente. Que te alcancaria a nado, naquele transatlântico, daquele cruzeirinho ordinário, com toda aquela moçada sem graça, que eu sei que fizestes no verão passado. Que pularia no convés, completamente encharcado de todo tesão e loucura, que o simples sentir suave do seu perfume, embora desbotado à oito horas, provocaria. Em mim o efeito de tanta coisa boa e doida e pérfida e imensa e cheia de cor e vida. Dizer que te esperaria naquela padaria chique ou na barraquinha mais pobre do mais agreste do sertão da Paraíba. Lá você até iria, eu sei. Off-road, que tu gosta. Aventura, dirias. Mas não saberia me despedir. Não saberia te abraçar por adeus, até logo, qualquer dia, em qualquer calçada, que te visse passar. Do outro lado, conversando com alguém. Pra quê dizer que te adoro? Te adoro. Te adoro, porra.

O gibi

Era um menino desenhado. Traços coloridos que iam do pescoço à cintura. Como um gibi, que meninos e meninas gostassem de ler. Alegre por criação, tinha sempre um balão sobre sua cabeça, que dizia coisas boas. Coisas que faziam com que cada vez mais se gostasse dele. Pequeno, colorido, com grandes alargadores nas orelhas. Para que pudesse melhor ouvir todas as declarações que nasciam para ele.

aí eu dou um ffffound e acho isso:


e ouvindo Kasabian. vai dormir, vai.

Por enquanto é só, pe pe pe ssoal.

Assim mesmo, gagejando e tentando terminar. Calando e tentando explicar. Alguém já disse que é no escuro que aprendemos a brilhar. Me atrevo a completar, que é no silêncio que aprendemos a ser. Paciência.

Bring it back

Me traga de volta os domingos de paz. Os cachorros correndo amarelos, no parque. O café ao meio-dia. A livraria de madrugada. O jornal no sábado à noite. A mãe acordando baixinho. A sessão da tarde com banana amassada. O disparo do coração ao ouvir a voz. A corrida cega pra logo chegar. O grito mudo ao ver chegar. O almoço tarde, sem fome. O beijo de duas horas. Os dedos cansados. A pele molhada sem secar. A parede pintada de azul. A prateleira colocada de surpresa. O presente esperado na hora inesperada. Os pés descalços na areia. O banho de cachoeira no fim do dia. O banho de chuva depois da praia. A rede balançando na total escuridão.

Puerto Madero

Mais do que aquele luxuoso desejo de um pedalar tranquilo pelo Puerto Madero, faz-se agora uma necessidade louca de café. Acabou o pó em casa, e eu tomo mais café que um fumante inveterado.

Fato

Feliz Aniversário, velho.

Ele contava tantas histórias. Meio como aquele pai do filme Peixe Grande e suas Histórias. A maioria mentiras. Ou verdades fantasiadas, sei lá. Mas vejo assim hoje, que estou mais velho. E mais chato, coisa que ele nunca foi. Quando eu era moleque e achava que ele era chato (e jogava isso na sua cara), na verdade eu não entendia onde ele queria chegar. E era sempre em mim. Ele sempre quis chegar em mim, mas eu não deixava. Tinha minhas razões. Mas hoje, analisando com distância, penso que ele entendia. E talvez por isso mesmo tentasse chegar. Mas talvez não soubesse como. E talvez eu não quizesse mesmo. Não me arrependo. Pensava assim naquela época, era o que tinha de ser. Hoje, com certeza agiria diferente. Com toda certeza deixaria ele chegar. Ele dizia que nascera debaixo de uma mangueira gigantesca, secular. Passávamos sempre por ela, na beira da estrada. Gigante, antiga, uma sombra enorme. Talvez ele não tivesse realmente nascido debaixo de sua copa. Mas seus pais moravam perto, eram empregados da fazenda que abrigava (e ainda abriga) a tal mangueira. Não importa. Hoje vejo que o que importa era o que ele queria dizer com isso, com todas as histórias que me contava. Mentiras ou meia-verdades, não importa. Hoje sei que as histórias eram só para mim. Ele nunca me contou histórias pra dormir, mas sempre pra que eu acordasse. Hoje meu pai faria aniversário.

Quero!

Preso no elevador

Né? Não há por onde correr. Aí você tem que encarar. E tem espelho, o que é pior. Parou de repente, tuuuuumm... Deu uma piscada de luz, mas não apagou. Ainda bem. Já pensou? Preso e no escuro? Uma espécie de túmulo. Vivo, o que é pior. Preso, você e aquele cara ali no espelho, que você não quer encarar. Porque você vai ler na cara dele. Tá lá, pra quem quiser ver. Ou não. Vê-se mesmo assim. Preso. Trancado. E ainda assim exposto mais do que nunca. Mais do que sempre quis. Eu nunca quis, juro. Mas agora tá aí. Silêncio. Nem um pio lá fora. Trancado por dentro. Que foi? Tá olhando o quê? Ele não vai te responder. Ele tá trancado em outro lugar. Há um vidro entre vocês. Alguém chamou um técnico. Batidas. E de repente, tuuuuumm... voltou. Abriu a porta. Um ar fresco entrou, trazendo alívio. Suor, e uma última olhada. Ele continuava lá.

Mera coincidência

"Às vezes a vida fica insuportável. Em vez de cometer suicídio, eu entro num cinema. Tenho uma enorme paixão pelo cinema. Quando estou escrevendo sempre penso: onde está a câmera? Quem olha esta cena? Qual é o ângulo desta visão?"
Caio F.

Seattle ou Ceará

Esquece quem você queria ser. Pensa em algo diferente. Você, cabeça raspada, num dia de muito calor, em Seattle. Ou Ceará. Viria uma brisa correndo de qualquer lugar que pararia em você. Passando a mão na sua cabeça raspada. Os fios espetando a palma da sua mão. E você pensaria em tudo de novo que queria para si. A cabeça já raspada de todos os pensamentos inúteis. Só você. Parado numa esquina qualquer. A calçada. A brisa. E o sol brilhando na sua cabeça raspada.