Sem tempo pra nada

A barba cresceu e não tem comida em casa. (Um pré-post feliz)

Pablo


O QUE FIZ JÁ NÃO ME INTERESSA. SÓ PENSO NO QUE AINDA NÃO FIZ.

Pablo Picasso

Anatomy

Pensamentos, como cabelos, também acordam despenteados.

Caio F.

Humildade


Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura,
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

– Cora Coralina

vimtebuscarporra

Antipático como um gaúcho, não entrei no bar. Fiquei parado na porta, olhando as pessoas lá dentro. As pessoas lá dentro se resumiam a quatro. A gorda tosca atrás do balcão, dois sosias cabeludos do Diego Luna, só que feios, e ela, que sentada num dos banquinhos no balcão, olhava fixamente o copinho já vazio, ao lado do pedaço de limão chupado. Ela não gostava de tequila, só bebia por minha causa. Sabia que eu odiava. Sendo assim, não foi com espanto que percebi que ao me ver parado na porta, ela deixou cair no balcão a máscara de messalina triste, pra ensaiar um sorrisinho parco, como quem diz que tá adorando tudo aquilo. Mas tudo aquilo era um boteco escuro de quatro metros quadrados todo forrado de azulejos brancos encardidos e uma Junkie Box velha num canto que tocava uma Perla paraguaia num volume ensurdecedor, mesmo para um sábado à noite. E ela era uma arquiteta premiada, não podia estar adorando tudo aquilo. Eu sabia que não. E achei graça do seu sorrisinho simulado. Sem demonstrar, só ri por dentro. O Diego Luna que estava mais perto dela inclinou-se pra dizer alguma coisa, como se já o tivesse feito antes, segundos antes de eu chegar. Por cima dos ombros dele ela me olhou com aqueles olhos grandes, que eu sabia que serem de medo. Talvez tenha pensado que eu invadiria o bar e pularia com os dois pés no peito do pobre Diego, que não tinha nada a ver com os nossos problemas. Ele só estava no lugar errado, na hora errada, fazendo a coisa certa. Que eu tinha de admitir, qualquer homem faria. Mas pra surpresa dela, eu não fiz nada. Meti aquela cara que o Dunga faz quando lhe indagam o porque da derrota da seleção e caminhei até a Junkie Box. Correndo os dedos no vidro, fingi escolher uma música, fazendo um esforço pra não vomitar em cima da máquina. O outro Diego, mais perto de mim, girou no banquinho e disse alto: – Põe Justin, gato! – Eu não pude deixar de virar pra olhar na cara dele. Mais por surpresa que por desafio. Fiz um esforço pra não rir, e antes que eu esboçasse qualquer reação, ela subitamente deixou o outro Diego no balcão e veio na minha direção, com aquela cara de mãe prestes a dar um puxão de orelha no filho.
– Não tem Justin aí – ela me confidenciou.
– Como você sabe?
– Eu já procurei.
– Você gosta do Justin?
– Você deveria saber…
– Por que?
– Porque convivo com você a três anos e sei tudo sobre você? – perguntou de volta.
– Eu sou mais fácil de entender.
Ela colocou uma ficha na minha mão e voltou pro balcão. Ela sabia que eu ia odiar isso. E abriu o maior sorriso que podia caber naquele bar, não pra mim, mas pro Diego ao lado dela. Meti a ficha na máquina e apertei com força o primeiro botão que vi. Os primeiros acordes de Piripipi da Gretchen invadiram o bar, estrondando a Junkie Box. Ela olhou de novo sobre os ombros do Diego, mas desta vez sorrindo o sorriso genuíno que eu conhecia bem. E que ela só sorria quando realmente estava feliz ou achava graça, porque era difícil que ela achasse alguma coisa engraçada. O Diego perto dela olhou pra mim pela primeira vez e voltou os olhos pro balcão, parecendo entender o que estava acontecendo. Foi quando eu disse pela primeira vez:
– Eu vim te buscar.
Mas disse baixo e ela não ouviu, porque a Gretchen berrava no bar.
– Eu vim te buscar.
– Quê? – ela fez aquela cara.
– Eu vim te buscar, porra! – gritei no exato instante que a música acabou e ouviu-se um copo quebrando no chão, do outro lado do balcão.
– Merda – disse a gorda.
Foi quando ela levantou do banquinho, disse tchau pro Diego sem olhar pra ele e passou por mim em direção à porta, me estendendo a mão. Foi aí que eu percebi que tinha uma garoa fina caindo lá fora.

La commedia è finita

Não saia de casa sem ele

Não. Agora eu quis dizer algo como embaixo deste céu seria inevitável o encontro na calçada. Não que ele pudesse ser evitado. O céu.

Drops SP

Precisaria paciência de explorador da National Geografic para vagar pelas ruínas cheias de fósseis do Bexiga. Olhar de restaurador holandes para as paredes antigas do velho Belém. Um ímpeto de caçador aposentado para digerir a fauna decadente da Paulista nos sábados à tarde.

Viste boludo que El Secreto de Sus Ojos ganó el Oscar?


O roteiro de O Segredo, escrito pelo diretor Juan José Campanella e Eduardo Sacheri a partir do livro deste último gira em torno de Benjamín Esposito, um oficial de justiça aposentado que decide escrever um romance baseado em um caso ocorrido há 25 anos. O caso fora um estupro seguido de morte de uma jovem professora na Buenos Aires dos anos 70. Este espaço de tempo é o suficiente para que se tenha clara a idéia do que foi e do que se tornou a vida de Benjamín, apaixonado pela sua promotora Irene. Mais do que a direção de Campanella, o trabalho dos magníficos atores centrais Ricardo Darín, Soledad Villamil e Guillermo Francella, quero destacar o que realmente me impressionou. O roteiro. Numa ida e vinda no tempo montada de maneira tão fluida, pelo próprio diretor, que quase não se percebe a passagem de tempo, ou melhor, percebe-se mas com uma sutileza tão grande, que este tempo parece único. No meu entender, uma mensagem oculta, a de que para o protagonista, o tempo não passou. Claro que não cronologicamente falando, mas simbolicamente, uma vez que Benjamín teve sua vida “congelada”, tanto pelo crime (que conseguiu desvendar, porém sem punir), quanto pela paixão nutrida durante toda a vida pela sua superior. Talvez eu tenha cometido “o erro” de assistir ao filme de maneira muito analítica, o que me levou a considerar o roteiro a coisa mais relevante da obra. De qualquer forma é o roteiro mais sutil e inteligente que vi nos últimos tempos. Onde o que parece ser a maior trama da história, revela-se secundário. Assim como o que não se supunha revela-se a grande descoberta. Detalhes tão sensíveis como o porta-retratos virado para baixo, no móvel na casa de Benjamín, as cortinas sendo fechadas pelo viúvo da assassinada, quando este recebe a visita do oficial aposentado, ou a letra A emperrada da máquina de escrever. Detalhes que talvez passem despercebidos, mas que na conclusão da história, vê-se a intenção do inteligentíssimo Campanella. E tente não prender a respiração na sequência dos quinze minutos finais. Assisti a O Segredo na véspera da cerimônia do Oscar e lembro de ter expressado que ele merecia muito mais que a estatueta dourada. De fato, a obra de Juan José Campanella é para entrar para a história do cinema. E não só do argentino. Recomendadíssimo.

Pô estas...


Não dá pra competir com poetas. 2 semanas de twitter, seguindo quem não me segue, mas isso é um sentimento meu / 2 caras que eu gosto bastante e que sairam da lista de blogs ao lado, deixando mais pobre esta blogosfera que às vezes faz brotar água nos olhos / 2 anos da mais pura saudade de quem não volta mais (o show foi adiado) / 1 TV que não liga mais, mas só porque eu quero assim / 1 festa de aniversário que não fui, de um casal adorável, que faz parte do meu coração / 3 provas de amizades sinceras / 1 noite de reencontro pra entrar pra história / E a maior das constatações: Não dá pra competir com poetas. Eles esfregam o coração na sua cara.
– Post recuperado graças ao google reader. Valeu, Yuri.

Enquanto você dorme

Pego um vôo enquanto você dorme e rezo pra que não tenha teto e eu nunca consiga chegar. Poderia estar chovendo tanto enquanto você dorme que seria capaz de encher toda a cidade em pleno domingo de sol e feira. Dispersaria o cheiro forte de peixe e manjericão, mas levaria junto o seu perfume. Que ainda ficara nos lençóis. Enquanto você dorme eu posso atingir aquele ponto mais alto e inatingível daquela sua trilha feita em Brotas. Chegar tão perto, muito mais perto do que jamais poderia tentar. E velaria por seu sono com um olhar de cristão que queima na fogueira. Depois fecharia a porta com cuidado, e pés de meia desceria os quatrocentos e cinquenta e nunca degraus que me levariam para o mais longe que eu pudesse ir. Enquanto você dorme.

SET | The Misfits



– Photos by Frank Capa - Reno, 1961

Raduan

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo).

– Raduan Nassar em LAVOURA ARCAICA.

Hoje

ANDEI NA RUA SOB A MIRA DO FRANCO-ATIRADOR NO ALTO DO PRÉDIO DA MINHA EMPÁFIA.

Vale a vista


O lugar era muito alto. Um pequeno platô de pedra que terminava apontando para a imensidão do oceano lá embaixo. Ventava muito, mas a vista era deslumbrante. Não era uma subida difícil, apesar da altura. A maior parte do caminho era feita facilmente de carro. Depois uma breve caminhada por uma vegetação rasteira, exclusivamente verde e chegava-se enfim ao ponto rochoso onde eles um dia haviam dado o primeiro beijo. O primeiro de muitos, infindáveis beijos. Mas ali, naquele dia quase sem sol e de muito vento, não houvera nenhum beijo até então. Subiram até aquele lugar que costumavam chamar de seu, numa esperança talvez inconsciente de voltarem a ser o que haviam sido um dia. Felizes. Mas os dias não costumam voltar. E eles descobriam isso apenas agora, imaturos e jovens que ainda eram. Ele conhecia o lugar desde criança, quando costumava pescar com seu pai naquela praia. Aprendera com o velho que as duas principais regras de uma boa pescaria eram paciência e silêncio. Apesar do ímpeto que a idade lhe imprimia, ele aprendera a ser paciente. Calmo, até. Falava num tom baixo para não assustar os peixes e apreciava o silêncio. Mas ali, naquele rochedo à beira do oceano, onde o vento o fazia lacrimejar e quase arrancava o vestido amarelo de verão que ela usava, pesava o mais absoluto silêncio que ele jamais teria sido capaz. O suficiente para lhe dar todos os peixes de todo aquele mar, que lá embaixo continuava a sua luta secular de destruir as pedras que ainda ousavam lhe enfrentar. Mas era uma luta lenta, infinita. Apenas os estrondos desta luta ainda quebravam aquele silêncio, enquanto ela começava a se encolher de frio. Nos cabelos, um lenço longo e fino, que misturando-se aos fios loiros, voavam juntos, violentamente. Ela também lacrimejava. O vento, talvez. Instintivamente ele ensaiou um movimento para abraçá-la e protegê-la do frio, mas não o fez. Mesmo sem ouvir palavra, entendia que não devia. Ela talvez não quisesse. Ele talvez não quisesse realmente. Os olhos dela fixos no mar lá embaixo, que mudava do tom de verde para um azul muito escuro, aquela cor que o mar adquire quando a tarde já se aproxima do fim. Ao longe ele ouvia as vozes dos pescadores na praia. Começavam a ir embora. Caso contrário o silêncio ainda estaria também pelas areias. Mas era o seu silêncio que ele queria romper. Mais até que o dela, que não era absolutamente de quem não quer falar. Mas antes, de quem não quer dizer. Eram coisas difíceis de serem ditas. Era um momento em que talvez chegassem juntos a uma mesma conclusão. De que ali, naquele silêncio absoluto, tinham todas as palavras que precisavam. O silêncio falava por eles, mais definitivamente que qualquer outro verbo que pudessem exprimir. Ele entendia isso agora e pensava que ela também. Um certo alívio engatinhou dentro dele e sentiu um impulso incontrolável, movido por um carinho estupidamente maior do que todo aquele mar. E com toda suavidade de que era capaz, tocou com as pontas dos dedos os ombros dela, a pele arrepiada de frio, por baixo da fina alça amarela do vestido de verão. Eles não se olhavam, mas ouviu uma espécie de suspiro, como se ela também, subitamente se sentisse aliviada. Sorriram de leve os dois, sem que um visse o sorriso do outro. O vento repentinamente deu uma trégua. As nuvens abriram-se mais e o sol encontrando o mar, ensaiava o por do sol mais bonito que eles presenciariam ali, depois de tanto tempo. Ela não sentia mais frio, apenas não conseguia tirar os olhos daquele mar. E sem aviso inclinou lentamente a cabeça nos ombros dele, que procurou se ajeitar nas pedras, apoiando-se numa delas, solta, que o fez perder o equilíbrio, tombando para o lado e rolando despenhadeiro abaixo. Não houve tempo para nada e ela ainda olhava o mar, quando se deu conta do que acontecia. O vento soprou mais forte, levando no ar o terrível grito dela, assustando os pescadores lá embaixo.

marina

"agora espera o último metrô

triste como uma romena

com essa imitação de pele

fedendo a dreadlock
que que vestem as atrizes que há muito

não são convidadas pra um teste

você me disse que nunca chupou um pau

por medo de ser acertada na nuca

por um telefone antigo

hitchcokiano

e acabar como uma cantora de um hit só

“lembra da nika costa?”

ao contrário do que você disse aos meus amigos

que se vangloriam como garotos embriagados

numa cidadezinha pacata

de já terem penduradas em seus pentelhos suas lágrimas

como gotas de orvalho que amanhecem na grama

após uma noite de fog

ok

agora fica aí e espera o último metrô

fechando o casaco e cruzando os braços

pra mantê-lo fechado

como uma vovó saindo da cama pra mijar

no meio da noite

talvez isso te dê um quê de protestante

talvez isso te faça parar no acervo

da get image"

– Sergio Mello