nota gastro/mental

Um copinho de Coca Cola
Um arrotinho
E tudo fica bem mais leve.

o cruel senhor



Estive perto de minimizar o empenho de te defender, quando percebi ser eu quem mais precisava de ajuda. Perante sua grandeza de mundo de recém-nato, não poderia partir em viagem contigo, carregando todos estes anos e bagagens às costas. Não sobreviveria à primeira encosta pedregosa que tivesse que subir, puxando à força, animais, utensílios e alguns poucos órgãos que me escapassem, espalhando pela estrada os restos do homem que fui um dia. Porque agora, ao me debruçar sobre aquela encosta que dá para a longa estrada que irás ganhar, percebo ser ela a serpente gigante e víbora que irá te roubar de mim. Mas não porque se deixas, e sim por uma ordem natural das coisas. Do tempo. O que é o tempo senão o mestre caprichoso que não fornece guarida a nenhum aprendiz? O tempo, o senhor que dá e rouba. O tempo, a meretriz que ensina e abandona. Vejo meus dedos encarquilhados, tortos na fome dos anos que insistem em passar. E a vergonha me impede de estendê-los num adeus, ao menos. Não quero que os veja ao olhar para trás e deparares com o velho na encosta a despedir-se de ti. Meu pequeno amor. Meu pequeno pedaço que deixo ir. Meu fiapo de juventude que tentei aprisionar. Mas não se aprisiona os pássaros daquele senhor. O tempo. Ele se encarrega de abrir todas as gaiolas e liberta todos os seus recém-natos, antes que possamos chamá-los de filhos, irmãos, amores. Agora vejo que se vai. E percebo que sequer vai olhar para trás. Para que? Para ver-me? Não podes. Impossível. Apenas eu consigo contemplá-lo na estrada. Pois nada mais é do que o menino que eu fui um dia e deixa agora para trás o velho na encosta. Sou eu. Sou eu mesmo que vou embora, e sou eu mesmo o velho a despedir-se. Diferentes momentos do mesmo homem, que aprendeu, sob o jugo daquele cruel senhor, o tempo, que não se pode impedir o vôo dos pássaros.

o último dia de mar


Chove no meu bolso e quando tiro a flor pra te dar, sai o peixe afogado que vem dar na praia, no último dia de mar. E todas as barracas de madeira seca, dispostas enfileiradas, formando um corredor, como velhos moais olhando o mar, sem um fim para o tempo de eternidade que lhes resta. Assistiremos junto deles este último dia, este espetáculo que o fim de tudo vai nos proporcionar. A chuva que não deveria estar ali. O peixe morto pela água que o fez nascer. Os moais cansados de tanto esperar. São os indícios deste último dia de mar. Sentamos com a calma de quem já se foi e vemos o último pingo da chuva equivocada, até ser vencida pelo sol que sai de trás das nuvens e caminha pela areia, até nos alcançar na platéia, bufões ridículos que somos, no lugar errado, a assistir este espetáculo. O último. O mar enfim se retrai, secando aos nossos olhos, enquanto vemos os peixes, que saltam sedentos pelo ar, num balé de agonizantes bailarinos. Um sopro de maresia venta então sobre nós, levando os galhos secos das barracas enfileiradas, como o último suspiro deste último dia de mar. O fim é mesmo desértico? Veremos talvez, aquela Caetana andando encarquilhada pela areia? Os cabelos secos e brancos voando pela maresia, antes do silêncio final? Sim, porque após aquela última lufada, a maresia também se cala. Ela também parece cansada, assim como os moais. É com certo alívio que os vejo enfim desabar de sua postura de vigia, após o fim daquilo que não precisam mais esperar. O mar agora é seco, juntando-se numa volúpia de morte à areia sob os nossos pés. O vento cessou. O sol ganha o espaço como verdadeiro e único rei de tudo que existe e de tudo o que irá enfim, pôr fim. Sentados à beira do que um dia foi praia, temos a visão privilegiada do fim que já esperávamos. Agora entendo a flor que não saiu do meu bolso. Agora entendo o olhar de inveja dos velhos moais.

assassino

Sem dúvida que preciso matar o minúsculo grão que ficou de você em mim. Sem dúvida, que embora minúsculo, ele cresce e sabe demais.

leminski

Comunique-se. Não nos deixe imaginando tuas dificuldades sem ter meios de te socorrer quando preciso.

o caminho de sua costela

Era uma menina que se chamava Nina. Menina, mas nem por isso tão ninfa. Tão distante do nascimento que se sentia às vezes tão velha. Mas bastava uma escovada, um espelho, um batom. Saía sempre sozinha, pois talvez fosse uma espécie de sina. Tinha uma saia vermelha que a avó dera. Talvez fosse o que enfim fizesse com que olhassem pra ela. Nina tinha uma espécie de irmão, parceiro, amigo e namorado. Tudo junto assim mesmo, em qualquer esquina. Fina, lenta e branquíssima, cruzava as coxas sob a saia vermelha. Ele tocava bem devagar. Sabia que ela não gostava de exasperações. Ele tentava sempre subir, mas ela pensava no catecismo e tinha lá suas convicções. Talvez ela tivesse medo, talvez ele não fosse físico, mas um medo de alma. Pois ele sempre ficava nu diante dela com impressionante calma. Coisa que ela não tinha. Uma fraqueza de rainha, embora fosse só uma Nina. Manias tão de menina que ele tentava fazer mais madura. Mas faltava muito. Ali, no meio de todo mundo, ele tocava sua coxa bem devagar, sem se fazer exaltado diante dela. Irmão, tinha a liberdade dos que amam sem explicar. Namorado, tentava dedo após dedo, alcançar suas costelas.

ÍTACA

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Poseidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te punhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Constantino Kabvafis

o profeta


Em 2005 o diretor Jacques Audiard realizou o filme De Tanto Bater Meu Coração Parou, que contava a história de um rapaz de 28 anos em um momento divisor de águas: seguir o caminho corrupto do pai, ou o lado virtuoso da mãe, pianista. Na maior parte do filme, vê-se este protagonista numa luta constante entre livrar-se da influência negativa do pai e entregar-se ao talento herdado da mãe. É um filme de violência plástica, cenas luminosas e música clássica, numa Paris colorida e musical. Corta para o rosto de César Luciani (Niels Arestrup), espumando o seu ódio diante de Malik El Djebana (Tahar Rahim), o jovem árabe que ele toma como seu protegido e ascecla. Niels Arestrup é o mesmo pai de De Tanto Bater, aqui num desenho magistral do mafioso e líder corsa, César Luciani. Malik é preso condenado à seis anos, em circunstâncias não muito explicadas. Sem “origem”, sem parentes, nem passado, é jogado numa cadeia dividida entre as facções dos árabes “sujos” e dos ítalo-franceses, liderados por Luciani. Talvez necessite assistir novamente à O Profeta. Não é um filme de fácil aceitação e muito menos digestão. É um filme sem heróis, ou antes, de muitos heróis. O fato é que, levados pela direção de Jacques Audiard, não conseguimos uma empatia com seu protagonista e principal “herói” desta jornada. Talvez eu tenha pecado em, na falta deste herói, ter-me detido à interpretação do incrível Niels Arestrup. É o tipo de composição de personagem em que quase pode-se sentir o cheiro de sua persona, tamanha é a veracidade que o ator consegue nestes casos. E sem dúvida, o cínico mafioso é um legítimo representante desta classe. Mas voltando ao protagonista anti-herói Malik, assistimos sua escalada dentro de uma organização (a ítalo-francesa), sem esquecer sua origem árabe. Aprendendo com seu protetor e master bandidão César Luciani, o jovem Malik rapidamente absorve o cinismo como única forma de sobreviver entre os dois mundos, e o pior, dentro de um espaço exíguo que é a prisão. Talvez não torçamos prontamente por Malik. Seu desenho e direção é composto justamente pra isso. Mérito de direção e roteiro. Mas aos poucos assistimos seu desfile fluídico entre aquelas paredes e aqueles homens já condenados por si próprios, como uma espécie de mérito alcançado por seu próprio esforço. Talvez Malik seja o único ali dentro que, apesar das circunstâncias, não se deixa entregar à sua condenação íntima, e em nenhum momento ele esmorece ou se considera sem salvação. Para sobreviver ele será capaz de tudo, matar sim, morrer jamais. Quero destacar a ambientação da prisão, que nos remete aos filmes de gângsters tão comum aos americanos, nos anos 70. Sem a sua plasticidade ascéptica, o que convenhamos, é muito mais interessante e próximo ao real, e em O Profeta, de suma importância para coerência da sua trama e tipos. E a já famosa “cena da gilette”, que antes mesmo de acontecer propriamente, nos oprime nos simples ensaios em que ela se prepara. Sem obviamente entregar a trama, destaco o talento do cinema europeu no que diz respeito às cenas de mortes violentas, mais uma vez se sobrepondo aos californianos. A morte violenta não é um balé a ser coreografado. Não tem que ser bela e sim coerente com a história e pano de fundo na qual são contadas. E nisso também o cinema francês se sobrepõe ao americano. Vide outra cena de morte, no filme Caché: surpreendente, chocante, verdadeira. Mas Jacques Audiard não quer chocar com o seu Profeta. Antes, prefere a discussão que o seu múltiplo personagem central nos oferece. Por isso assistí-lo mais de uma vez, para talvez decifrá-lo. Talvez, o que pode na realidade, jamais acontecer.

confirmando paraty

"Vem dos caminhos do mar
Vem navegando cansado
Meu barco azul enfeitado
De bandeirinhas e luz
Só pra que, só porque
O carnaval na rua vai chegar
E o nosso bloco abre alas pra passar
Agora é vida, agora é sonho
O carnaval esta na rua
O passado pouco interessa
Abre a janela, vem ver a lua
Vem ver estrelas e a madrugada
A aurora é linda em Paraty
Agora é vida, tristezas não
Tira a saudade do coração�"

Zé Kleber