ouvi

– Por que você não põe parágrafos nos seus textos?

tem razão, por que? agora tem.

– Queria tanto que você ficasse. Você fica? Promete?

prometo.

– Verdade que você consegue deletar pessoas?

Não consigo esquecer. Mas consigo ignorá-las a existência. Se é cruel? Talvez. Mas deixaram marcas não menos.

– E agora, o que você vai fazer?

Continuar vivendo, há outra possibilidade?

(ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.) Hilda Hilst

obrigado, ferreira.

"Converter a vocação em expressão demanda um esforço imenso. Tudo vai depender do equilíbrio entre o acaso e a necessidade. A vocação é acaso. A expressão é necessidade. Compreende a diferença? No fundo, a vida não passa de uma constante tensão entre acaso e necessidade.”
– Ferreira Gullar, tirado daqui.

Rachando o bico

Now you say you’re lonely e todas essas bobagens que cantam os paulistanos notívagos artísticos. Vou te falar que este papo é muito relativo. Tão relativo quanto esta noite na calçada, depois de tanto tempo sem pôr os pés pra fora. Eu tô só fantasiando, esta noite ainda não aconteceu. Ainda tô em casa, no meu exílio forçado. Gosto de pensar assim, como um Neruda enclausurado, dando um del em quase tudo que brota. Desde idéias até brilhantismos suores. Ah, brilhantismos… de onde você tirou isso agora? Mas as idéias pulu (lam). Das mais ordinárias às mais ordinarias ainda, se é que é possível.

Dizem que é assim mesmo, você compra um livro com muitas páginas, mais de 500, de preferência. Aquela tal bíblia do tal cara fudidão, que te indicaram. Aí você lê e se sente um merda/catedrático/lunático/pseudo/docaralho. Uau, agora sim. Mas o processo segue, claro, diferentemente pra cada um. É uma rinha de galo (e de galinhas), este lugar onde você treina, não percebeu ainda? Sorte sua que são galinhos magros e depenados. Imagina se te jogassem numa daquelas arenas de pit bulls musculosos e bem alimentados com ração de prima? Aí sim você estaria fudido. E mal pago, porque só quem é bem pago neste país são os ETS, NBAs e TRIPLO As da vida, fiquei sabendo estes dias. Eu tenho um amigo que tá na escalada em busca de se tornar um Triplo A, mas ele ainda não comprou aquele triplex na Vila… não vou lembrar agora, mas ele tá tentando. E diz que um Triplo A não pode, além de muitas outras coisas mais, se apaixonar por qualquer pessoa, não. Primeiro me mostra o diploma, depois eu te mostro os peitos, senão nada feito. Tá pensando o quê?

Aí como bom galinho magro e depenado, você se esforça pra tirar algum leite que seja, das pedras que colocaram em seu caminho, nem que pra isso tenha que rachar o bico. Fique bem claro que rachar o bico aqui não tem a conotação que os paulistanos notívagos ou não, têm. Rachar o bico tentanto tirar o leite, compreendeu? Mas não desiste não, o que importa é tentar. Se você não é ator de Hollywood e não precisa trabalhar, deve entender o que estou dizendo. Ah, esqueci os Triplo As. Mas eles também trabalham, pelo menos até se tornarem verdadeiramente um Triplo A… tá, parei. E o Neruda hein? Faz-me rir. Eu não ganho grana com o que escrevo. Eu não tenho prestígio com o que escrevo, e aí me perguntam, pra quê essa merda? Não sei também, tô tentando descobrir. Mas tá bom o negócio, acho até que este processo é mais bacana do que o de me tornar um Triplo… ops. Enfim, o processo tá bacana, acho que é assim mesmo que rola.

Me agrada a idéia do Neruda, por mais distante que esteja. Óbvio, você entende que é uma figura de linguagem, né? Me agrada da idéia do exílio, me agrada a idéia de uma noite em claro numa terça-feira qualquer, me agradam tantas outra idéias. Só me advertiram pra não mergulhar no crack, isso não. Até porque o galinho não ia aguentar mesmo o cachimbinho. Now you say you’re lonely? Bem vindo a clube, cara. Nada como um paulistano notívago (os melhores), pra te ensinar a lutar sem perder muitas penas. E nem rachar muito o bico.

violoncelo


02 minutos a tempo de ver o moleton cinza aberto, jogado com pressa. Nem tanto frio assim, mas quem poderia dizer. Ficaria mesmo quase tranquilo só para ouvir suave o violoncelo, enquanto volátil, uma voz sairia não para dizer, mas para encantar. Menos de 01 minuto para estragar tudo querendo tocar e reter algo que não era pra isso. Mas a tempo percebi e meti as mãos nos bolsos fundos do jeans furado, desistindo de tudo. Mas não de ouvir o doce violoncelo. Mas não de ver o moleton cinza fechado. O inverno chegava.

Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.

– Caio F.

esquizofrenia e coca-cola

Quando enfim sentirmos o cansaço supremo, então daremos conta do longe que sempre esteve tão perto quanto as possibilidades que a vontade nos permitia. Porque durante a vida nos acostumamos a fazer estes faz-de-conta, mesmo sabendo que no fundo não sabemos mesmo onde pode dar. Vemos os quilômetros da distância perderem facilmente para a distância das vontades. Quando enfim nos cansarmos de nos bastar, pode ser tarde. À espera de estarmos prontos, somos capazes de morrer mil vezes durante anos a fio, sem nunca ficarmos prontos. Nunca estaremos prontos. E o cansaço virá, indubitavelmente. E depois dele, quem poderá saber. Disse uma vez, sem tirar os olhos da tela, que era sua, amarela, o quanto tinha pra dizer, mas perdia-me diante da sua completa perdição, que eu confundia com magnificência. Talvez você tenha percebido meu engano e sorriu, amarelo, dizendo que o tempo se encarregaria de dizer tudo. Que me importava o tempo? Que me ajudaria o tempo? Queria eu mesmo naquele momento conseguir verbalizar toda a dolorosa felicidade que me explodia pela garganta. Queria vomitar tudo aquilo, só assim conseguiria uma plenitude tão grande como a sua me parecia. Não disse nada, embora tivesse todo o tempo para dizer. Não era capaz de dar conta daquela felicidade. Não saberia viver com ela, embora sem ela não conseguisse respirar direito para subir os degraus que levavam até aquela vila de casas, de plantas nas portas. Traz Coca-Cola, se vier. Não poderia, reconheço hoje. Há lá fora uma felicidade que não é minha. Havia naquela vila de casas uma felicidade que não poderíamos.

some of the most interesting people I know, don't know what to do with their lives.

– Do blog do Delson.

wild




o cortiço

Do meu coração, terreno baldio e alagado,
fiz um cortiço de quartos,
de paredes sujas e teto rachado

Embora baldio o terreno, era fertil a sua terra
e algumas flores nasciam,
sem que ninguém as plantasse

A seus inquilinos, todos devedores,
tinha por hábito perdoar,
eram todos vagabundos e perdidos,
assim como eu

Os quartos não eram seguros
e por vezes ruíam, sufocando
quem estivesse lá dentro

De minha parte, como mau administrador,
não sabia prever,
só sabia abrigar

Enquanto as flores cresciam
e os quartos ruíam,
o terreno virava uma espécie de entulho,
de túmulos não planejados

Tive por fim uma ordem de despejo,
trouxeram máquinas, analistas,
que me obrigaram a tudo limpar,
e a todos os inquilinos expulsar,

Mas eram todos devedores,
e assim como eu, sem ter para onde ir,
ficaram todos no mesmo terreno baldio,
onde não havia mais quartos,
mais nada

Mas a terra era fertil,
e lá no fundo, num canto de cerca qualquer,
alguma flor ainda insistia.

Mafalda

Paraty / London

Poderia fingir que fui à Londres, fiquei uns dias e voltei com livros, CD’s, posters. Poderia fingir, mas não vou. Me recuso a ignorar a tão doce e tão mais próxima Paraty. De onde não trarei livros, tampouco posters com dizeres de Virgínia Wolf. Trago no máximo algumas lembranças de janelas azuis sobre penhascos cobertos de folhagens, à beira do estouro das ondas lá embaixo. É perigoso, eu sei, mas creio que isso não é o suficiente para mim, ou para me inibir diante da força das ondas nas pedras. Posso escorregar para um tchibum fatal, eu sei, mas isso nunca me impediu. Deveria, reconheço, mas nunca me impediu. Como um tio ao contrário, ainda me arrisco, ainda me submeto à espera do sobrinho mais coerente que virá me puxar as orelhas. Ah, essa juventude tão acadêmica e tão segura em seus perfis virtuais. Talvez não conheçam a dor de um bom escorregão sobre as pedras. As luxações e fraturas que um tombo bem tomado pode causar. E elas ficam, acreditem. Elas sempre permanecem, embora nem sempre elas te inibam. E você cai mais vezes. Cair e levantar, sem beber, de preferência. Porque é preciso estar lúcido para administrar e absorver todas as experiências. Mesmo as dolorosas. Já disseram por aí que existe algum prazer na dor, vai saber. Vai descobrir por si próprio, depois você me conta. Mas eu falava de janelas azuis e estas têm muita força em minhas lembranças nem tão doloridas assim. Janelas azuis só perdem para portões vermelhos. Estes sim carregados de drama, paixões e tragédias, típicas de um bom dramalhão mexicano, ou mesmo carioca. Mas são as janelas azuis que me calam mais, me hipnotizam mais. São por elas que as folhagens lá de fora querem entrar. De baixo e tão perto vem o ruído do mar, de dentro e tão doce pode ser o testemunho do seu despertar. Como se emuldurassem para mim este momento entre as janelas azuis. Como único visitante desta privilegiada galeria, por onde entraria, vencendo pedras, limos, folhas, ondas e penhascos. Lá fora, após as janelas, ainda tem o sol, como quem já vai embora, com inveja de mim.

Sonhei

Ainda bem que ainda tenho você por perto
Que ainda vejo sua respiração embaçando a janela
Que ainda sinto a sua respiração bem perto
A sua voz bem dentro
E o seu pensamento bem nítido na minha cabeça

Ainda bem que o que ficou de ontem foi o sonho
Tão nítido e tão claro como estas mãos agora no teclado
Se sonhar, algumas vezes, é projetar, desejar, então durmo tranquilo
Não só a sua voz ouço clara dentro de mim
Seu pensamento se mistura ao meu e eles se embaralham na minha cabeça

Recostado na janela, ouvi um violão que vinha de cima
Sonhando acordado, como se você o tocasse, não dormi
Mas sonhei
Sonhei que era você que tocava, tão nítido e tão claro na beira da minha cama
Tão clara como a sua voz que ainda ouço dentro de mim.

Sereno

A viúva que sai de madrugada no quintal de gramas molhadas. Sereno que já caiu desde cedo. Tornando molhada sua noite. Escura. Fria e em silêncio. Pisa os pés quentes no banhado de orvalho e mete as unhas sobre a camisola fina atingindo a pele branca. Vermelha e molhada de tanto suor, de tanto suor maior que todo sereno ou oceano deste mundo feliz. Que agora ela não reconhece mais. Agora que ela já não morre mais.