voar ou morrer

Quero te tirar daquele cercado de roça, daquele refúgio de amor que te quiseram manter. Nada mais é do que o quarto trancado do pássaro menino que não pode voar. Quero abrir o portão de madeira velho e afagar o cão que vais deixar à sua espera, órfão do seu carinho de prisioneiro. Mas corre, atravessa os limites da prisão da qual eu vim te libertar. Quero que entendas, antes de escapar, que não é a vã liberdade que te ofereço, mas o escape da prisão de amor que o fizeram condenar. Agora olha para trás uma última vez. Vê o velho portão. Vê o velho cão. Vê o pai e a mãe, que te fizeram infeliz por tanto te amarem. O medo que terás agora só não é maior que o medo que te mantinha aprisionado. Quero que ganhes o mundo, como o filhote que se atira no espaço sem muitas escolhas. É voar ou morrer. Quero que ganhes a vida por tuas próprias asas. Quero que voe livre sem lembrar do que ficou para trás. Mas espero que lembres, que também se sofre e se pena nas mãos daqueles que nos dizem amar.

mini drama IV

No quarto:
– Me corta com este bisturi.
– Não tenho coragem.
– Corta!
– Você é louco.
– Corta, você já foi tão mais fundo que isso.

mini drama III

– Tô sem grana...
– Procure emoções baratas.

mini drama II

A vida é uma boate e eu não conheço o DJ.

mini drama I

Chorar de alegria é que lava a alma de verdade. Mas tem faltado sabão há algum tempo.

morta

Aquela carne fedia muito. Forte. Presente. Ele ainda a abraçava, acarinhava-lhe os cabelos secos. Cabelos de cadáver. Estava morta. Ele sabia. Ela não o via mais. Mas ele não se apartava daquela decomposição. Forte. Fedia. De nada adiantavam suas lágrimas caindo sobre aquela pele seca aberta em feridas podres. Estava morta. Ele sabia. Sorria às vezes, olhando com carinho aqueles olhos fechados. Sorria. Ela não ouvia mais. Estava morta. Ele sabia. Apertava ainda com mais força aquela carne gelada entre seus braços. Apertava. Chorava. Sorria. Tinha tanto calor e ela não sentia mais. Estava morta. Deitou ao seu lado, encolhido, fetal, calado. Olhava o seu rosto, ainda apaixonado. Não precisava falar. Não a via mais. Estava morta. Não estava mais ali. Mas ele não sabia.

reveillon em sta tereza

Segura agora a sua taça vazia
que o reveillon já passou
você não viu
você dançou
não, ele não te tirou
você não viu?
você não vê nada
lambe agora sua tacinha vazia
sem aquele gosto que tu gosta
sem aquele nojo que ele dava
mas mesmo assim você gozava
lambe agora a sua calcinha molhada
jogue longe a taça
espatifando nas pedras de Santa Tereza
vai pra onde?
volta a pé pra casa
a estas horas ainda não tem bonde.

obrigado

Vim agradecer o soco. Na boca do estômago, como sempre acreditamos ser mais válido. Mais autêntico. Nada daquelas desculpinhas apressadas, sem muito fundamento ou lógica. Não é tão mais sincero o golpe certeiro, de forma que não fiquem dúvidas? Dói, mas é rápido, e a bem da verdade, inesquecível. Venho então a público para isso, agradecer o golpe, ainda que ele tenha me custado alguns analgésicos e noites insones em que não encontrava uma posição adequada para relaxar e dormir. Pois doía em todos os lados que tentasse. Doía em todas as posições em que não te encontrava ali, do lado. Mas doía de uma forma boa, veja só. Doía de uma forma definitiva, quase poética. Como um fim de tarde em Paraty. Como um almoço de toalhas brancas sobre amendoeiras. Como um violento ato sexual às 10 da manhã de um sábado preguiçoso depois da yoga. Doía em todos os lados. Principalmente o de dentro. Mas doía de uma forma boa, porque explicativa. E embora fosse dificil aceitar isto naquelas noites em claro, era certo que no dia seguinte talvez ficasse mais fácil de se conviver. Com ela, a dor. Que estava em todos os lados, de dentro, de fora, acima, abaixo. O soco então era aquela espécie de bezetacil dolorida que ninguém quer tomar na bunda, porque, dizem, é onde há mais carne. Nem sempre, tanta bundinha magra por aí. Mas é o estabelecido pelas leis medicinais, vamos colocar assim. Então, depois da agulhada ou mesmo o baque seco do soco no estômago, têm-se aquela sensação quase boa da esperança de que depois daqueles segundos dolorosos, virá enfim, o alívio. Melhor assim. Que adiantam longos meses ou mesmo anos de afagos e carinhos mentirosos ou mesquinhos? Vive-se aquela mentira agradável, confortável. Mas, como um pé descalço sobre o gêlo, nervos e ligamentos tentam desesperadamente avisar ao seu cérebro que, opa, se liga, tem alguma coisa errada e você não vai conseguir pisar neste terreno por muito tempo. Então, se por algum motivo você não consegue se mover e tirar o pé, ou mesmo recusar os afagos, que embora mentirosos, são tão agradáveis, então, acredite, é bem melhor o soco. Certeiro, na sua alta estima anã. Peace.

o louco encantado

Que podia ser agora
ser antes e ser sempre
mais divino que me acordar chorando
mais mortal que me acordar sorrindo
mais clichê que me esperar na chuva

se me encanto não aprendo
nem ganho se venço a luta
espero com a garganta presa
que explodirá agora
antes, sempre.
Louco.

Aí pelas Três da Tarde

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

Raduan Nassar, do livro "Menina a caminho", 1994 - Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas.

manutenção

Era de se esperar que o café saisse preto. Que a goiabada desse formiga. Que o farelo espalhasse do pão e o elevador entrasse em manutenção. Antes mesmo que eu tentasse uma breve faxina, o amor subiria de escada. Pois ele não come goiabada, nem espera na esquina.

AGORA TEM MAIS UM... VAI LÁ.

Risinhos Nervosos

terra

Cheirou as mãos. Sentiu o perfume e andou. Caminhar naquele terreno era ter aos pés a calma dos mortos, a textura dos vivos. Pisando-o, sentia o tato dos dedos que baixavam um a um, feito um dedilhar pianista naquela terra fertil e rica, pois intocada. Intocada, não virgem. Cabia ao caminhante descobrí-la por entre relvas, deslizes e durezas de carne. Um sobrevôo de planícies de pele, de montes vulcânicos e um pouso de pioneiro. Terra doce sem erosão ou solavancos. Espécie rasteira que permite deitá-la e sonhar acordado, olhando as estrelas dentro dos seus olhos. Ilha de todos os meridianos e loucos navegantes, que deixa fincar no seu rincão a bandeira do servo humilde e pedinte, que mata a sede na sua generosa maresia.

Dá o sinal

Não que fosse tão tarde. Mas aquele horário em que a maioria das pessoas já chegou em casa. Não que fizesse muito frio. Mas era uma noite silenciosa, com uma lua apenas razoável. E aquela rua não era exatamente perigosa, mas já estava deserta na hora em que ela chegou devagar ao ponto de ônibus e sentou, suspirando fundo. Era uma noite comun. Sem happy-hours, sem comemorações ou jantares especiais. Era uma rua praticamente deserta, onde ela costumava esperar o ônibus, todos os dias, na volta para casa.

Limpou com a bolsa o assento de metal, iluminado por uma publicidade de xampu e abraçou o próprio corpo. Gostava disso, lhe dava um certo aconchego. Constatou no pequeno relógio de pulso que talvez já tivesse perdido o ônibus que passava naquele horário. O que a fez pensar no tempo em que ainda deveria esperar e no pouco que lhe restaria de descanso, uma vez em casa. A dez anos atrás ela não se preocuparia tanto com este tempo. Mas era mais jovem. Não que fosse velha agora. Mas era um tempo em que ela ainda esperava que se cumprissem as promessas que ela mesma se fazia.

Ele chegou em completo silêncio. Só se fazendo notar quando já sentava, dois assentos distantes do dela. Ela não olhou, mas o cheiro forte de cachaça chegou até ela. Virou-se quase de costas para ele, atenta ao início da rua. Foi quando um ônibus dobrou a esquina. Indo até a beira da calçada, ela percebeu não ser aquele o seu ônibus. Voltou ao banco num suspiro longo. Só então ela o viu. Não era um mendigo, como talvez houvesse pensado. Tampouco parecia um bêbado, desses que ela costumava ver pelas calçadas, quando saia tarde do escritório. Mas notadamente, ele estava bêbado. Ele lhe pareceu mais um peixe fora d’água, que não deveria estar ali, naquela hora, naquele estado. Com aquelas roupas dois números maiores que o seu. Um solitário, constatou. Ele vestia-se como um homem solitário. Ele cheirava como homem solitário.

– Não era o seu… Ele ensaiou continuar.
– Não.
– Mas era o meu. Não tive forças pra levantar – ele ensaiou um sorriso.

Alguma coisa naquele quase sorriso e entonação de voz, fêz com que ela efetivamente olhasse para ele. Tinha a testa suarenta, os olhos injetados pelo álcool, mas conseguia olhá-la firmemente. Uma calvície precoce o fazia parecer mais velho do que talvez realmente fosse. Ele parecia antes, sofrido, desgastado. O fato é que alguma coisa, talvez piedade, talvez afinidade, a tenha feito falar.

– Eu poderia ter feito o sinal pro senhor.
– Não me importo.
– Eu sim, estou bem cansada.
– Também estou…
– Já é tarde e daqui a pouco vou estar de volta, neste mesmo lugar.
Ele apenas balançou a cabeça.
– O senhor trabalha por aqui?
– Minha filha. Naquele prédio, ali. – apontou pra esquina.
– É onde trabalho. Talvez até conheça sua filha.
– É secretária. Uma firma boa...
– Também sou secretária. Minha firma não é tão boa, mas tô tentando arranjar alguma coisa pro meu filho mais velho.
– Ela não me recebeu. Mandou que esperasse. Esperei. Faz muito tempo que não vejo minha filha. Depois veio um segurança e disse que todo mundo do escritório já tinha ido embora. Ela deve ter ficado com vergonha. Eu entendo. Faz muito tempo que não vejo minha filha.
– Meu filho morou um tempo com o pai. Mas pouco tempo. Os filhos geralmente preferem as mães. O senhor não acha?
– A mãe dela morreu. O caso é que ela não prefere a mim, mesmo.

Ele olha pro início da rua. Um ônibus vira a esquina, buzinando pra um mendigo que atravessava na sua frente.

– É o meu! – ela diz, animada.
– Que sorte... dá o sinal!

Ela chega até a beira da calçada. Mas alguma coisa, naquele quase sorriso e entonação de voz, a faz voltar.

– Eu espero o outro.

california dreaming

O amor era um filtro de barro que ela tinha sobre a pia. Sob ele o paninho branco que a mãe fizera.

Ele a fotografou um dia, olhando a luz branca que vinha da janela da cozinha. O filtro de barro no fundo. E ela desfocada.

Foi um flash rápido, o tempo só de criar o moleque. Que não ia fazer faculdade, graças a um tio. O mandaria à California, pois queria ser skatista.

O filtro de barro quebrou no dia em que o menino voltou, pra lhe mostrar o neto. Era loirinho, tinha olhos azuis e a chamou, grandma.

que bobagem...

faz tanto tempo que confesso / que tanto tempo te peço / pecando pelo excesso / fazendo jus a um processo / e você me queima com este nespresso?!

ouvi ontem

"Tudo ressoa, mal se rompe o equilíbrio das coisas. As árvores e as ervas são silenciosas: se o vento as agita, elas ressoam. A água está silenciosa: o ar a move, e ela ressoa. As ondas mugem: é que algo as oprime. A cascata se precipita: é porque falta-lhe solo. O lago ferve: algo o aquece. Os metais e as pedras são mudos, mas ressoam se algo os golpeia. Assim também o homem. Se fala, é porque não pode conter-se. Se se emociona, canta. Se sofre, lamenta-se. Tudo o que sai de sua boca em forma de som se deve a um rompimento do seu equilíbrio... A palavra é o mais perfeito dos sons humanos; a literatura, por sua vez, é a mais perfeita forma de palavra. E assim, quando o equilíbrio se rompe, o céu escolhe entre os homens os que são mais sensíveis e os faz ressoarem"

– Han Yu, poeta chinês do século VIII.

operário

Quem se pendura em andaimes não sobe na vida.

oficina

Fui inventar de fazer uma oficina de literatura. Resultado: CRISE!!! :((

atenção senhores passageiros

Informamos que já estão nas suas asas o combustível necessário. Em caso de pressurização, não use nenhuma máscara. Use suas asas.

insustentabilidade

Ei, eco-chato, preserve o planeta mas me poupe.

Horácio

“È hora de beber, / De tanger a terra/ com o pé liberto”.

você nasce agora

Somos tão bestas quanto o curador da vernissage
Somos tão tristes quanto as Patrícias da buatchi
Queremos tão pouco e exigimos tanto de todos
Queremos tanto e exigimos tão pouco de nós mesmos

Quando virarmos a esquina, veremos nossa mãe morta no meio da rua
Quando andamos mortos pela rua, nossa mãe ora por nós antes de dormir.

não esqueça a minha, caloi.

"Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive".
Vinícius de Moraes

– Para quem já me "salvou a vida" duas vezes, meu amigo Marcelo Caloi.

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