A vampira que veio do frio


– Oskar e seus algozes: eles não perdem por esperar.

Nenhum som, nenhuma música. Um céu preto, neve caindo. Silêncio. Assim começa Deixe Ela Entrar (Låt den Rätte Komma), filme sueco do diretor Tomas Alfredson. O filme estreou nos EUA paralelamente à Mostra de Cinema de São Paulo, onde fez bastante sucesso. Compreensível. Não é um filme de terror e vampiros a exemplo dos realizados ultimamente. Não há dentões, não há alhos, água-benta ou coisa que o valha. O excelente diretor sueco prefere outro caminho. O mais sutil e por isso mesmo mais interessante. E mais assustador. Prato cheio pra quem gosta de filmes de terror. Ao renovar neste gênero, Alfredson consegue criar, junto ao tema macabro, uma metáfora sobre as dificuldades da fase da adolescência e mais ainda, sobre o primeiro amor. Sem grandes sustos, ele opta por uma economia ao mostrar a menina vampira nos raros ataques que ela faz, aumentando ainda mais o suspense, mostrando aos poucos imagens aterradoras cada vez mais crescentes.
O filme nos mostra Oskar, garoto de 12 anos proveniente de uma localidade distante na Suécia. Na escola, ele é vítima do assédio moral constante e implacável de seus desafetos. Em seus momentos de solidão, sempre à noite, ele conhece Eli, menina pálida e arredia, que acaba de se mudar para o apartamento ao lado do dele. Amizade logo transformada em paixão. Relação absolutamente normal não fosse Eli, na verdade, uma vampira. E mais do que carinho e amizade, ela tem sede sangue. Oskar e Eli formam então um improvável casal e esta relação será definitiva e servirá como um rito de passagem para ambos. Filme de terror absurdamente acima da média, Deixe Ela Entrar merece especial atenção não só por parte dos admiradores do gênero. Dispa-se de seus temores e preconceitos e assista a um exemplo de bom cinema. Bom, sangrento e apaixonante.

Gomorra


Certo, eu perdi muita coisa boa na Mostra de Cinema de São Paulo. Muita coisa boa rolando em horários nem sempre compatíveis com os da classe proletariada. Entre as coisas boas que não consegui assistir, está o filme Gomorra, do diretor italiano Matteo Garrone. Saiba mais sobre ele, acessando o incrível blog Digestão, do incrível Márcio Claesen, que traçou uma crítica muito interessante sobre esta obra do "novo cinema" italiano. Enquanto não entra em circuito comercial, contento-me em postar este cartaz, simples, mas contundente de Gomorra.

Amanhã, dia das bruxas, vamos falar de terror. Mas terror com estilo.

Diego e Frida


Continuação do post sobre Diego e Frida.

Minha noite é como um grande coração batendo (parte II)

"(...) Minha noite me esgota. Ela sabe muito bem que você me faz falta e toda a escuridão não basta para esconder essa evidência. Essa evidência brilha como lâmina no escuro. Minha noite quer ter asas e voar até onde você está, envolvê-lo no seu sono e trazê-lo até onde estou. Em seu sono você me sentiria perto e seus braços me enlaçariam sem você despertar. Minha noite não traz conselhos. Minha noite pensa em você, sonha acordada. Minha noite se entristece e se desencaminha. Minha noite acentua minha solidão, todas as minhas solidões. O silencio ouve apenas as minhas vozes interiores. Minha noite é longa, muito longa. Minha noite teme que o dia nunca mais apareça, porém ao mesmo tempo minha noite teme o seu aparecimento, porque o dia é um dia artificial em que cada hora conta em dobro e, sem você, já não é vivida de verdade. Minha noite pergunta a si mesma se meu dia não se parece com a minha noite. Isso explicaria à minha noite por que razão eu também tenho medo do dia. Minha noite tem vontade de me vestir e me jogar para fora, para ir procurar meu homem. Mas minha noite sabe que o que se chama loucura, de toda espécie, semente da desordem, é proibido. Não é proibido unir-se a ela, isso ela sabe, porém ela não gosta de ver uma carne unir-se a ela por causa da desesperança. A carne não é feita para desposar o nada.   Minha noite o ama com toda a sua profundidade. Minha noite alimenta-se de ecos imaginários. Ela pode. Mas eu não, eu fracasso. Minha noite me observa. (...)"

Lado Negro


– Pra quem ainda tá nessa...

Banksy in NY


– Flávia, será que você viu algum destes?

Sorvete


Tinham combinado um sorvete por volta das 6 da tarde. Telefonemas rápidos, uns torpedos e um atraso se fêz necessário. Desabou um destes temporais pré-verão lá pelo início da noite, atrasando o sorvete. Era um pretesto. Tava calor. Ambos suavam e esperavam. Precisavam falar, mas nunca conseguiam dizer, o que antes pensavam, quando chegava a hora de se verem frente a frente. Naquele dia não seria diferente.
Torpedo 1: Me dá mais uma horinha, vai. Eu não contava com este dilúvio.
Ela resolveu ir pra casa e deixar o sorvete pra mais tarde, sabia lá, quando.
Torpedo 2: Me deu fome. Vou comer alguma coisa em casa, tá?
Sete horas. Oito horas. Nove horas. Dez horas.
A chuva passara rápido. O suficiente pra deixar o ar mais leve. Respirável. Ela abriu bem a janela da sala e respirou fundo enquanto mergulhava a cabeça na almofada.
Torpedo 3: Tô louco pra te ver, mas parece que tão conspirando contra. Chego em 10 minutos.
Onze horas e ele chega. Ela abre a porta e se depara com cabelos revoltados, roupa úmida, um ar cansado, uma barba crescida. Ele entra lamentando. Imprevistos. Chefe chato. Trânsito. Caos. Enchente. Tempo perdido. Tenta se explicar. Ela quer sim, saber porque esperou tanto. Mas não quer ouvir tudo aquilo. Nem quer também dizer tudo aquilo que nunca conseguia dizer quando se viam, frente a frente.
Torpedo 4: (Que chega depois dele) Olha, vamos deixar o sorvete pra outro dia.
Naquele momento eles só se abraçam sem falar nada. Não querem. Não precisam. Ficam assim, juntos. Quietos. Em silêncio. Sem sorvete.

Do blog do Rafael Paschoal


"Todos somos suburbanos

Eu sou o muro pixado. Eu sou o banho de mangueira no jardim. Eu sou a placa de papelão pintada a dedo. Eu sou a barraquinha de cachorro-quente na esquina. Eu sou a locadora de VHS. Também sou o saquinho de Cosme e Damião. Eu sou o botequim que vende cerveja gelada. Eu sou a poça d´água. E sou a pessoa que se molha. Eu sou a folha seca que cai da amendoeira. Sou o carteiro que vaga. Eu sou a cadeira de praia na calçada rachada. Eu sou o vendedor de pipoca com toucinho. Sou o vizinho mais chato. Eu sou a gambiarra que ilumina o quintal. Eu sou a padaria que vende picolé. Eu sou a garrafa de cloro que limpa a piscina. Sou o moleque descalço. Eu sou o doce-de-coco. Sou o bueiro sem tampa. Eu sou a igrejinha ao lado da sua casa. Sou a rua molhada de chuva. E eu sou o sacolé de morango. Eu sou o aviário que abre aos domingos. Eu sou o torresmo gorduroso. Eu sou o bronze na laje. Sou também a criança que faz birra.Eu sou o churrasco na varanda. E eu sou a antena que roda com o vento. Sou a festa de São João! Eu sou a goiabeira carregada de frutos. Sou o funk na festinha do playground. E sou o cão que dorme debaixo dos carros. Sou a dose de cachaça. Sou aquela vizinha chata que reclama dos latidos da matilha. E também sou o chá de folhas de aroeira, que cura qualquer coisa, menos a artrite da Dona Jureminha."

– Como eu queria ter escrito isto.

Deixe ela Entrar


Em cartaz na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo
Sábado - 25/10 - 23:10, no Cine
Sesc

– Sigam-me os bons!


Sempre fui fascinado pela obra e história de vida dos artistas mexicanos Frida Kahlo e Diego Rivera. Não apenas pela obra polêmica e agressiva de ambos, mas também pela intensa relação que nutriram durante décadas e a forma igualmente intensa como um influenciou o trabalho do outro, tornando-os artistas únicos em sua época. Impossível passar "impune" por um mural gigantesco como os feitos por Diego, ou pelos dolorosos auto-retratos pintados por Frida. Tendo passado grande parte de sua vida presa a uma cama, Frida suportou ausências e traições por parte de Diego, sofrimento claramente traduzido tanto em seus quadros, como nas cartas que ela lhe escrevia, algumas nem sempre enviadas. A partir deste post, transcrevo uma que, devido ao seu tamanho, dividirei em algumas partes. Apaixonada e visceral, como a vida e a obra de Diego e Frida.


Minha noite é como um grande coração batendo (parte I)


"São três e meia da madrugada.
Minha noite é sem lua. Minha noite tem olhos grandes que olham fixamente uma luz cinzenta filtrar-se pelas janelas. Minha noite chora e o travesseiro fica úmido e frio. Minha noite é longa, muito longa, e parece estender-se a um fim incerto. Minha noite me precipita na ausência sua. Eu o procuro, procuro seu corpo a meu lado, sua respiração, seu cheiro. Minha noite me responde: vazio; minha noite me dá frio e solidão. Procuro um ponto de contato: a sua pele. Onde você está? Onde você está? Viro-me para todos os lados, o travesseiro úmido, meu rosto se gruda nele, meus cabelos molhados contra as minhas têmporas. Não é possível que você não esteja aqui. Minha cabeça vaga errante, meus pensamentos vão, vêm e se esfacelam, meu corpo não pode compreender. Meu corpo, esse azarão mutilado, quer esquecer-se por um momento no seu calor, meu corpo pede algumas horas de serenidade. Minha noite é um coração de estopa. Minha noite sabe que eu gostaria de olhar você, acompanhar com minhas mãos cada curva do seu corpo, reconhecer seu rosto e acariciá-lo. Minha noite me sufoca com a falta de você. Minha noite palpita de amor, amor que eu tento represar, mas que palpita na penumbra, em cada fibra minha. Minha noite quer chamar você, mas não tem voz. Mesmo assim quer chamá-lo e encontrá-lo e se aconchegar a você por um momento e esquecer esse tempo que martiriza. Meu corpo não pode compreender. Ele tem tanta necessidade de você quanto eu, talvez ele e eu, afinal, formemos um só. Meu corpo tem necessidade de você, muitas vezes você quase me curou. Minha noite se esvazia, até não sentir mais a carne, e o sentimento fica mais forte, mais agudo, despido da substância material. Minha noite me incendeia de amor. São quatro e meia da madrugada."


– Casa/studios onde viveram Diego e Frida. Construções separadas e interligadas por uma ponte, sendo a menor e pintada de azul, a que pertencia a Frida. Hoje transformadas em museus, na Cidade do México.

Atendendo a pedidos


– MUSE :))

Perfect Symmetry


– Capa do novo Keane

PEACE


– Arte de Justin M. Maller

Uma única vez


– Foto de Custódio Coimbra.

Reinterpretando os Clássicos


http://nfgraphics.com/

Não tô com cabeça


– Eu, eu mesmo, na visão do incrível Daniel (Quiabo) Faísca.

Pegue a estrada


http://2photo.ru/2006/12/29/fotograf_pod_nikom_foureyes.html

Stupid Fox


– Arte de Silent Reaper - EUA

Malinha preta


Tinha a malinha preta
lascada de velha
sobre a cama
sobre a colcha rôxa
cheia de fiapos

A malinha preta e surrada
quase quadrada
quase cheia
de todas as camisas de linho
cada uma de uma cor
cada uma de uma vez

Olho a malinha enquanto
abotôo o último botão do paletó
cor de quem vai
cor de quem não espera mais

A malinha preta não pesa
vai quase vazia
comigo pela estrada
passou uma carroça cheia de meninos
brincando
levantando a poeira
que caiu grão a grão sobre o preto
da malinha

Em mim eu não me importo
ajeito só o chapéu pra enganar o sol
que vai a pino
que vai comigo
e a malinha
e a estrada.

Super Pateta


Agora, justamente agora, que calcei as pantufas do pateta, iac, iac, você me chama pra saltar as cercas que escapam deste quartel. Agora, não sei. As pantufas vão molhar em todas estas poças de lama além das cercas. E também vou precisar de uma mãozinha pra saltar. É porque as pantufas pesam um pouco, sabe? Mas acho que consigo. Nossa! Além das poças tem um visual azul aí do outro lado, hein. Caramba. Que azul! Não me importo em deixar as pantufas pra trás. Acho que elas só vão atrapalhar o salto sobre as cercas. Mas tudo bem. Eu já vou treinando uns mortais aqui deste lado. Pra saltar com estilo sobre as cercas. Sim, porque todo este azul aí do outro lado, merece ser invadido com estilo e alegria. Agora, mais do que o estilo que o salto mortal bem treinado me daria, só mesmo uns super-amendoins do Super-Pateta. Aí sim, hein. Aí sim eu não saltaria as cercas, mas voaria sobre elas, com o uniforme vermelho e surrado do Super, gritando alto: iac, iac! Mas, veja você, aqui deste lado, no quartel, foi ordenado que derrubassem todas as formas verdes de vida. E os pés de super-amendoins não vingaram. Mas eu já pendurei as pantufas e o mortal já começa a ser exaustivamente ensaiado. Com vigor e fúria. É que o incrível azul me espera lá fora.

Grilos

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Design for Obama


Vários designers gráficos estadunidenses apóiam abertamente a candidatura de Barack Obama à presidência. A ponto de criarem uma página chamada "Design for Obama", onde vários profissionais apoiam o candidato com sua arte. Vale a pena uma visita.

Design for Obama

True Blood


Material promocional da série True Blood, lançada em setembro na HBO americana.

Mais que terror, a série aposta num mote sexual, com o slogan "ninguém deveria morrer sem transar ao menos uma vez com um vampiro".

Hotel La Guardia


O neon verde do velho Hotel La Guardia estava quase todo encoberto pela neblina, comum naquela época do ano, aquela hora da madrugada. Visto assim, de longe, o letreiro do Hotel parecia um fogo verde tentando ganhar vida no topo do prédio do antigo Hotel. Ele subia a rua e olhou ainda mais uma vez, no alto, o fogo verde tentando ganhar vida, enquanto dava a última tragada no cigarro. Levantou a gola do casaco, enquanto seus olhos se enchiam de água. O vento, talvez. Continuou subindo, vencendo o vento. Passou em frente a um boteco, o único aberto aquela hora, naquela rua deserta. Ouviu a risada de um velho no balcão e o som de um rádio mal sintonizado. Ainda pôde ouvir o final de uma notícia, que dava conta de uma sepultura violada, no cemitério da cidade. Loucuras de um mundo perdido. Veio um calor lá de dentro que quase o fêz parar. E o velho no balcão parava de rir. Mas ele sequer olhou pro lado. Seguiu, subindo a rua, quase vencido pelo vento. Enxugou os olhos e parou em frente à entrada do Hotel, com sua porta de madeira envelhecida, pintada num improvável verde musgo. Olhou para cima, mas o neom verde não era visível daquele ângulo. Mas pôde ver o topo do prédio, agora totalmente encoberto pela densa névoa que parecia querer engolir o prédio inteiro. Uma corrente gelada de ar correu pela calçada, passando por ele. Olhou o relógio. Chegara na hora marcada. Acendeu outro cigarro e esperou, impaciente, tirando o chapéu. Em poucos segundos a velha porta verde musgo se abriu, devagar. Uma figura miúda, negra, como um gordo besouro, começou a descer os minúsculos quatro degraus até a calçada. O rapaz jogou longe o cigarro e apertou nervosamente o chapéu entre as mãos, enquanto o besouro se aproximava. Ele pôde sentir um cheiro de mofo quando a pequena figura parou à sua frente.
– Pontual. O besouro elogiou.
A voz nasalada e calma do minúsculo homem fêz um pânico repentino percorrer o corpo do rapaz, já quase congelado.
– A noite está muito fria, eu sei. Por isso, vamos ser breves.
– Tudo saiu de acordo?
– Absolutamente. Parece que o silêncio que pesou sobre a cidade no dia de ontem, deixou todos congelados, paralisados. O senhor percebeu que quase ninguém saiu de casa esta noite?
– Não.
– Natural, o senhor está muito abalado. Mas não se preocupe. Fiz tudo conforme o seu pedido. E aqui estamos nós.
O rapaz procurava algo nos bolsos do casaco preto, enquanto o besouro abria um sorriso medonho esticando o fino bigode, dando-lhe um aspecto de quase demônio.
– O seu pagamento, conforme o combinado.
O pequeno homem apanhou nas pequenas mãos o envelope robusto e deixou escapar um leve arrôto de puro contentamento. Os pequenos olhos pretos brilharam e ele finalmente olhou nos olhos do assustado rapaz.
– Eu conheço a sua família desde muito antes do senhor nascer. O senhor sabe. Eu sei que não sou bem quisto pelo povo daqui, essa gente mesquinha que tem medo da própria sombra. Mas, talvez por isso mesmo o senhor tenha me procurado.
Apesar do vento frio, o rapaz começava a suar e a olhar em volta, aflito por encontrar alguma testemunha daquele encontro. Mas o besouro tinha razão. Não havia ninguém pelas ruas. A cidade estava morta.
– Esta quantia é o suficiente para que você vá pra bem longe daqui, como é do seu desejo.
– Eu sou muito grato ao senhor. Cumpri a minha tarefa, mas com profundo pesar, o senhor esteja certo disso. Diz o besouro, entregando-lhe uma chave de um quarto do La Guardia.
– Sou eu que devo lhe agradecer...
O rapaz fecha enfim o casaco preto e colocando o chapéu, sobe os quatro pequenos degraus em direção ao interior do Hotel. Quando o besouro lhe adverte, ainda com a voz muito calma, mas firme.
– Não se preocupe com o porteiro desta noite. Ele está nos fundos do Hotel e se acordar, só será em dia alto, amanhã!
O rapaz não respondeu. Com um leve aceno de cabeça, concordou e prosseguiu, abrindo a porta verde-musgo.
– Outra coisa! Uma última coisa, doutor.
– O que é desta vez?
– Eu sei que já conversamos sobre isso e o senhor sabe que o meu dever é cumprir aquilo que combinamos. E eu o fiz. Com um grande pesar, mas o fiz. Mas o senhor perdoe minha insistência. Eu me preocupo com o que pode acontecer. Se esta gente sabe que o ajudei...
– Isso não vai acontecer. Pelo que vejo você desempenhou muito bem o seu papel. Desapareça daqui e não volte nunca mais. Quando notarem a sua ausência, já será tarde demais.
– Mas doutor, o que o senhor pretende fazer?
– Eu havia proibido perguntas, esqueceu? A sua parte foi cumprida. E a minha também. Adeus!
Entrou rápido no Hotel, antes que o besouro o impedisse mais uma vez. Passou pela pequena e deserta recepção ao lado das escadas, ganhando silenciosamente o estreito corredor do Hotel. Abriu a porta do quarto e um cheiro de terra molhada invadiu suas narinas, enquanto ele acendia o pequeno abajur ao lado da cama. E ele finalmente a viu, linda, sobre a cama. Sentou ao seu lado, afagou seus cabelos e uma onda incontrolável de lágrimas brotaram dos seus olhos enquanto ele desabava sobre o corpo imóvel daquela mulher. Cego, louco, alucinado, lembrou, numa fração de segundos, tudo que o levara até ali. Eles se casariam no dia anterior. Mas ela, acometida por um mau súbito, morrera enquanto dormia, um dia antes da data marcada. Diante das famílias paralizadas, ele acompanhou, sem muita reação, todos os procedimentos que se seguiram. Apenas na volta do enterro, sozinho, em seu quarto, diante da sua roupa de noivo, ainda sobre a cama, é que ele se entregou por completo e com infinito prazer, ao delírio e a loucura que a dor lhe oferecia. Planejou tudo em silêncio, sozinho, perdido em sua dor. Não chorava mais. Pensava nela. Estaria novamente com ela. Os dois juntos. Como sempre sonharam. Contratou furtivamente o besouro, e este lhe devolve a noiva recém-sepultada, de acordo com as suas ordens de viúvo e insano. Ali, mais uma vez do seu lado, finalmente ele sorriu, depois de tanto chorar. Não tinha mais forças. Queria apenas dormir, para sempre, em silêncio, abraçado a ela.

Tanto tempo...


Passaram-se alguns anos. Poucos. O suficiente para que ambos desaparecessem. Cada um por uma estrada. Por mundos distantes. Diferentes agora. Depois de tanto tempo... Sem se falarem. Sem se ver. Sem se saber. Eis que se encontram. Tão de repente e tão por acaso neste mundo que não era mais o deles. Cada um na sua nova casca, na sua nova cara. Tão mudados. Mas eram eles ainda. Surpresos, sentaram. Um café. Uns sorrisos. Uns cigarros. Umas perguntas. Normal. Tanto tempo... E você? Indo. Filhos? Não. Eu tenho. Quantos? Morei fora. Tanto trabalho. Eu parei. Tanto. Nossa. Eu não voltei mais. Claro que eu lembro! E agora? São minha vida. Casada? Ainda. Eu também. Silêncio. Por um instante ainda, olharam-se com mais atenção. Como faziam antes. Bem fundo, nos olhos. Buscavam. Buscavam o quê? Eles. Ontem. Tanto tempo... E se viram, finalmente. Iguais. Idênticos. Imediatos. Fixo o olhar. Mas o olhar, este era outro. Fixo, mas agora vazio. Não estavam mais lá. Não existiam mais. Perceberam. Tinha algo triste lá dentro. Algo que não conheciam. Algo que não reconheciam um no outro. Não sabiam explicar. Não sabiam entender. Silêncio. Incômodo. De repente. Era o olhar da casa vazia. O caminhão da mudança esperando lá fora. O olhar frio. O olhar vazio. Era o olhar do morto antes que lhe fechem os olhos.