Ah, quando você passou por mim na rua com aquele sobretudo acolchoado azul que você usa quase todos os dias frios, eu quase te parei. Tá deixando o cabelo crescer, eu percebi. Tava frio essa noite e você andava com os olhos fincados nos pés, como sempre. Olhos de quem não quer ver. Você não me vê as vezes que te vejo. Ou quando passa por mim, saindo da padaria, apressada, comendo aquele sanduíche de mortadela que eu sei ser o seu preferido. Tava frio e você parecia feliz dentro do sobretudo azul com os cabelos mais crescidos e com umas pontas claras caindo sobre o sobretudo. Você não me vê quando a gente se cruza. Mas eu sempre vejo você. De perto você parece bem pequena, apesar do ar de rainha que você carrega. Ou as pessoas te vêem rainha, sei lá. Essa noite fria eu quase te parei na calçada molhada. Mas um caminhão de leite parando em frente a padaria veio alimentar a minha covardia. Eu quase te parei. Mas parei quando você passou e deixou aquele cheiro doce e eu tive de olhar. Não, não pra sua bunda, eu juro. Tive que olhar pra ver o rastro do manto que você deixou na calçada, indo em direção ao seu trono dourado.