A vida real da personagem


Ela retirava a maquiagem. Aos poucos, sem pressa. Os chumaços de algodão embebidos em lágrima, iam pouco a pouco limpando toda a cor da sua cara. Despia-se na frente dela. Olhava aquela cara no espelho cercado de luzes. Metade dela ainda branca. Ainda vermelha. Ainda a outra. A outra que ela estranhava. A outra, que não era ela. A outra, que ainda gozava. Ela lembrava. A poucos minutos atrás, a outra gozava e ali, sentada diante do espelho, ainda sentia as pernas tremendo do gozo da outra. Chorava. Ela chorava. Porque, se a outra parecia tão feliz? A outra sumia, pouco a pouco. Ela tinha este poder, de matar a outra quando quisesse. A outra vivia. A outra gozava. Ela não. Te mato agora, desgraçada. Sorriu então, chorando. Sorriu pela vitória. Apenas o lábio inferior ainda vermelho. O último traço da outra. Sorrindo ainda, sentiu a força da outra naquele pequeno pedaço de carne dela, ainda pintado de vermelho. O sorriso dela encolheu. Olhou fixamente aquele ponto de cor na sua cara totalmente pálida. A sua cara. A sua, verdadeira e sem muita razão. Era a cara de quem não goza. O ponto vermelho. Sentiu subitamente uma vertigem aguda que fêz estalar sua cabeça. Tentou levar a mão à fronte, mas ela não deixou. Ela. A outra no espelho. A metade da boca ainda vermelha que agora ria um riso aberto enquanto ela paralizava. A outra vivia e a fazia parar. O coração, quase. A outra sorria, viva, colorida, gozando de todo o poder que ela agora deixava escapar. Porque não a matara enquanto podia? Quando sentara no pequeno banco, diante do espelho. A outra agora devolvia o seu olhar assombrado com o sorriso calmo de quem é. E sabe disso. A pequena metade ainda vermelha, abria gigante aquela boca pronta pra engolir. Era dela, agora era da outra. Era a outra que vivia livremente. Assustadora. Completa. Absoluta. A outra a devorava naquele instante. A vida da outra, que agora consumia o pouco que ainda restava dela. A vida real era da outra. No espelho.

0 Response to "A vida real da personagem"