Eu praguejei e achei que ia ser chato. E foi. Apenas a espera foi chata. A espera pelo início do julgamento. Sim, pela primeira vez na vida, eu estava naquelas cadeiras uma ao lado da outra, compondo uma sala de tribunal. Fui convocado para ser parte integrante de um júri popular. Qualquer cidadão honesto deste país corre este risco. Qualquer cidadão honesto corre tantos riscos neste país... Enfim, lá estava eu. O publicitário, entre uma professora, uma estudante de advocacia, um garçon, um psicólogo e uma dançarina. Sim, uma dançarina também pode ser convocada. Desde que seja honesta, claro. Você, assim com eu fazia, pode ter uma idéia do que é um julgamento, pelos filmes (americanos) que estamos cansados de assistir. Mas não é igual. Nem vou discutir aqui as regras da lei brasileira, que muito difere da americana. Mas, mais do que isso, a maior diferença, é que ali, naquela sala, eu não assistia a um filme. Era real. E pior, eu fazia parte daquilo. O réu era um rapaz de no máximo 25 anos, negro, baixa estatura, morador da periferia de São Paulo, que matara um rival do tráfico de entorpecentes da região em que moravam e estava preso já a 5 anos. Réu confesso, que estava ali para ser finalmente julgado e condenado. Assim pediam ambos os promotores. Sim, o advogado de defesa também pode pedir a condenação do réu (eu não sabia disso). Vou me abster de narrar aqui os trâmites do julgamento e a nossa perplexidade de jurados de primeira viagem. Não é isso que quero colocar. Talvez eu queira cuspir finalmente o grande caroço que me atravessou a garganta, ali, naquela cadeira, de frente para aquele rapaz, que a despeito de toda sua origem de pobre, negro, favelado, brasileiro, fudido como tantos outros das periferias deste país, cometeu um crime. Matara outra pessoa. Era a primeira vez que eu me encontrava frente a frente com um assassino. E ele não parecia um assassino. Alguém passa a parecer um assassino, depois que assassina alguém? Não sei. Sei que ele não parecia. Era um garoto comum, como tantos que a gente vê nas ruas, todos os dias. Podia ser o motoboy da empresa que você trabalha. Podia ser o atendente da padaria. Podia ser o engraxate da praça. Podia ser você. Podia ser eu. Ok, você pode dizer que nem eu, nem você somos da periferia, ou tampouco estamos envolvidos com tráfico de drogas. Mas, sabe, olhando aquele garoto franzino e algemado na minha frente, eu pensei: eu podia estar ali. Qualquer pessoa podia estar ali. Ele não parecia um assassino. Mas era. Ele era um monstro? Não. Era um ser humano, como qualquer outro, que um dia, levado por sei lá quantas circunstâncias, mirou a cara de um cara e puxou o gatilho. Foram cinco tiros. Num outro garoto, à época com 16 anos. Que podia tê-lo matado, também. Mas não o fêz. Ele o matou antes. Assistiam ao julgamento, o pai e uma irmã do réu. Juro que não conseguia olhar pra eles. Não conseguia. Parece loucura, mas me sentia envergonhado. Olha que louco. Eu, me sentia envergonhado, por estar ali, julgando o filho e o irmão deles. Mas, mais que vergonha, talvez uma vergonha destruidora, sentisse o próprio réu. Que em nenhum momento, nenhum segundo sequer, de todo o tempo que durou o julgamento, ousou olhar na direção de seu pai e sua irmã. Como disse, ele já cumprira 5 anos e sua sentença, ao término do julgamento, foi de 12 anos. Depois, nós do júri, em conversa com os promotores, fomos informados que talvez ele não cumprisse os 7 anos restantes. Ficaria mais 5 e seria solto. Ele tinha bom comportamento, disseram os promotores. Não me considero capaz de julgar ninguém. Nem mesmo um assassino. Mas nós julgamos sempre, diariamente, aleatoriamente. Despudoradamente, nós julgamos a todo o tempo. Não fui embora do fórum com a sensação de dever cumprido. Saí dali, com a sensação de tão condenado, quanto ele.
25.3.09
Caramba, que narração boa, sincera. Nunca tinha ouvido um jurado falando! E olha que tenho um passado de repórter policial... Aliás, quando você falou em vergonha, eu lembrei do primeiro preso que entrevistei na vida. Era um sujeito preso por estelionato, na Delegacia do Consumidor. Eu, foca de tudo, não conseguia perguntar pro cara por que ele tinha sido preso. Eu tinha vergoha! Depois, acostumei. É foda.
Abraços, Mário Viana.
Gostei do visu do blog.
25.3.09
Pôxa... obrigado, Mario!!!
25.3.09
Meeeeeeeeeeeeeeeeeeee. Apenas uma palavra: "Livro". Abraço!
25.3.09
Heitor, que situação bizarra, meu irmão. Puta narrativa essa tua.
E que mundo estranho, este.
25.3.09
Muito doido termos o poder de julgar alguém dessa maneira. Seu belo relato me lembrou um pco um filme do Billy Wilder.
BJO
27.3.09
Adorei o texto também! Muito bom mesmo! Também nunca me imaginei sentado num banco de julgamento e não sei o que faria caso me chamassem (bom, talvez eu não seja assim tão honesto...). Mas concordo com você que a gte julga a todo tempo. E como julga. E é um exercício fdp tentar corrigir isso. Mas um dia a gte ressolfe.
27.3.09
"A gente resolve", Denis!!