Vale a vista


O lugar era muito alto. Um pequeno platô de pedra que terminava apontando para a imensidão do oceano lá embaixo. Ventava muito, mas a vista era deslumbrante. Não era uma subida difícil, apesar da altura. A maior parte do caminho era feita facilmente de carro. Depois uma breve caminhada por uma vegetação rasteira, exclusivamente verde e chegava-se enfim ao ponto rochoso onde eles um dia haviam dado o primeiro beijo. O primeiro de muitos, infindáveis beijos. Mas ali, naquele dia quase sem sol e de muito vento, não houvera nenhum beijo até então. Subiram até aquele lugar que costumavam chamar de seu, numa esperança talvez inconsciente de voltarem a ser o que haviam sido um dia. Felizes. Mas os dias não costumam voltar. E eles descobriam isso apenas agora, imaturos e jovens que ainda eram. Ele conhecia o lugar desde criança, quando costumava pescar com seu pai naquela praia. Aprendera com o velho que as duas principais regras de uma boa pescaria eram paciência e silêncio. Apesar do ímpeto que a idade lhe imprimia, ele aprendera a ser paciente. Calmo, até. Falava num tom baixo para não assustar os peixes e apreciava o silêncio. Mas ali, naquele rochedo à beira do oceano, onde o vento o fazia lacrimejar e quase arrancava o vestido amarelo de verão que ela usava, pesava o mais absoluto silêncio que ele jamais teria sido capaz. O suficiente para lhe dar todos os peixes de todo aquele mar, que lá embaixo continuava a sua luta secular de destruir as pedras que ainda ousavam lhe enfrentar. Mas era uma luta lenta, infinita. Apenas os estrondos desta luta ainda quebravam aquele silêncio, enquanto ela começava a se encolher de frio. Nos cabelos, um lenço longo e fino, que misturando-se aos fios loiros, voavam juntos, violentamente. Ela também lacrimejava. O vento, talvez. Instintivamente ele ensaiou um movimento para abraçá-la e protegê-la do frio, mas não o fez. Mesmo sem ouvir palavra, entendia que não devia. Ela talvez não quisesse. Ele talvez não quisesse realmente. Os olhos dela fixos no mar lá embaixo, que mudava do tom de verde para um azul muito escuro, aquela cor que o mar adquire quando a tarde já se aproxima do fim. Ao longe ele ouvia as vozes dos pescadores na praia. Começavam a ir embora. Caso contrário o silêncio ainda estaria também pelas areias. Mas era o seu silêncio que ele queria romper. Mais até que o dela, que não era absolutamente de quem não quer falar. Mas antes, de quem não quer dizer. Eram coisas difíceis de serem ditas. Era um momento em que talvez chegassem juntos a uma mesma conclusão. De que ali, naquele silêncio absoluto, tinham todas as palavras que precisavam. O silêncio falava por eles, mais definitivamente que qualquer outro verbo que pudessem exprimir. Ele entendia isso agora e pensava que ela também. Um certo alívio engatinhou dentro dele e sentiu um impulso incontrolável, movido por um carinho estupidamente maior do que todo aquele mar. E com toda suavidade de que era capaz, tocou com as pontas dos dedos os ombros dela, a pele arrepiada de frio, por baixo da fina alça amarela do vestido de verão. Eles não se olhavam, mas ouviu uma espécie de suspiro, como se ela também, subitamente se sentisse aliviada. Sorriram de leve os dois, sem que um visse o sorriso do outro. O vento repentinamente deu uma trégua. As nuvens abriram-se mais e o sol encontrando o mar, ensaiava o por do sol mais bonito que eles presenciariam ali, depois de tanto tempo. Ela não sentia mais frio, apenas não conseguia tirar os olhos daquele mar. E sem aviso inclinou lentamente a cabeça nos ombros dele, que procurou se ajeitar nas pedras, apoiando-se numa delas, solta, que o fez perder o equilíbrio, tombando para o lado e rolando despenhadeiro abaixo. Não houve tempo para nada e ela ainda olhava o mar, quando se deu conta do que acontecia. O vento soprou mais forte, levando no ar o terrível grito dela, assustando os pescadores lá embaixo.

4 Response to "Vale a vista"

  1. mélis Says:

    Pra variar, o texto é lindo, escrito de um jeito que a gente vai vendo a cena, quase sentindo o que eles sentem.
    E acho que esse é o maior "final-surpresa" que eu já vi por aqui.

  2. Anônimo Says:

    Nem a Lygia Fagundes Telles pensaria num final desses... :O

  3. Anônimo Says:

    hahaha, adorável.

  4. Antônio Moura Says:

    Eis uma entre muitas qualidades de sua escrita: você consegue prender a atenção do leitor, que pode esperar uma conclusão nada previsível. Quanta riqueza de detalhes. O texto ficou cinematográfico. Show!