Era muito cedo na manhã cinza. Ou fim da madrugada que terminava triste. Talvez fossem as duas coisas. Por ser tão cedo e ser tão tarde era justificável ninguém por testemunha. Ninguém por perto para te salvar. Nem mesmo eu, dormindo, profundo e ilhado no outro lado da grande avenida, afogado nos meus próprios medos. Era o grande feriado que começava com festa. Que explodiria no domingo, na maior e pior de todas elas. Mas era também o fim de uma noite, mais uma em que depois de tantas, tantas outras, ainda te seduziam. Pois você ainda acreditava. Seu espírito velho e sábio se entregava sem razão ao som, às luzes, às vozes, às mãos de tantas outras, que só eram felizes por ter você por perto. Como um poderoso ímã a que ninguém (quase ninguém) conseguia resistir. Era assim desde muito tempo, eu sabia. Eu entendia, embora não concordasse. Concordar não é a palavra. Eu não invejava. Talvez porque no fundo soubesse que em verdade, em essência, você não estivesse ali por inteiro. Em meio ao som, as luzes, as mãos tontas de tanto amor para dar. Não, você era maior. Sua alma era maior. Sua aura era mais eterna do que todas aquelas luzes coloridas de mercúrio que um dia qualquer se partiriam em mil pedaços. Assim como você, naquela manhã cinza. Mas disso ainda não sabíamos. Houve um dia, uma noite, em que se comemorava o seu aniversário. Nesta noite única pude ver, ouvir, sentir o que só confirmaria o que no íntimo eu já sabia. A sua alma implacável, capaz de capturar para sempre outras tantas. Frágeis e jovens almas. Diferentes da sua, velha e sábia. Mas voltemos à manhã cinza, após a noite de festa triste, aquela última. Talvez você tenha entrado tímido e em silêncio naquele saguão. Talvez você tenha entrado cantando e sorrindo naquele saguão. As cameras registrariam, mas eu jamais veria tais imagens. Então o ruído musical do elevador quase chamaria sua atenção. Ele se repetiria, uma, duas, três vezes. Você volta ao saguão ainda tonto de tanta alegría, tristeza e esperança. Caminha até a piscina do hotel. Só, incrivelmente só. As câmeras registrariam. Onde estariam todos que te adoravam? Lá fora um velhinho passaria, agasalhado, no passeio matinal com o seu cão. Talvez você o tenha visto pelas vidraças. Olha então as cadeiras de madeira, pintadas de branco, na beira da piscina. Você poderia, se vencido pelo cansaço, deitar-se numa delas e dormir profundamente, em segurança, e ser acordo ao meio-dia, com o movimento habitual e caloroso do hotel lotado, em pleno feriadão. Talvez. Talvez. Talvez. Talvez. A palavra que nunca deixa de ecoar. A palavra que podería fazer com que tudo, num segundo, mudasse, e fizesse de nós um pouco mais, só um pouco mais felizes. Mas talvez, ainda no ímpeto da loucura da noite triste da grande festa, você tenha escolhido não as cadeiras. Você olhou para a água e sorriu aquele sorriso que seria capaz de fazer com que tudo, realmente tudo, acontecesse. Aquele sorriso. O último. E você escolhe a água. As câmeras registrariam. Sem sombra de dúvidas, sem dúvida alguma imagino que naquele momento você estivesse feliz demais. Feliz pra caralho, essa é a palavra. Ao diabo as cadeiras, ao diabo o sono, ao diabo a bala que te fez tão louco naquele momento, mas uma loucura diferente daquela loucura que te fazia viver e tornava viva a loucura dos outros. Todos os outros que te adoravam. Então, muito feliz você pula na piscina. As câmeras registrariam. O hotel ainda dormia. Ninguém por testemunha. Ninguém para te salvar. Nem mesmo eu, que dormia profundo e ilhado no outro lado da grande avenida, afogado nos meus próprios medos. Mas que se tornavam tão miseráveis diante do seu, ali na manhã cinza, naquela piscina deserta.