da Folha Online
Era um homem cordial. Fazia questão disso. Adorava ser educado, usar palavras gentis, dar preferência, ter compostura. Adorava a palavra compostura.
Na fila do banco, do supermercado, numa loja, na padaria, sempre olhava para ver se tinha algum idoso, alguma mulher, uma grávida quem sabe, com quem pudesse ser gentil, a quem pudesse ceder a vez.
No trânsito, costumava ser insultado com freqüência, porque vivia deixando qualquer um passar na frente, esperava aquela velhinha atrapalhada estacionar sem pressa, nem chegava perto dos motoboys, parava no sinal ainda amarelo, nunca ultrapassava a velocidade permitida. "Sai da frente, mané! Roda presa!", ouvia, e deixava para lá, com um sorriso superior, de quem sabia exatamente o que estava fazendo e fazia exatamente o que queria fazer: ser correto, gentil, sem estresse, tentando provar para ele mesmo, para sua família e para o mundo que, sim, o homem é basicamente bom. E o brasileiro, particularmente, é cordial, o Sergio Buarque de Hollanda estava certo...
Houve um dia que chegou ao cúmulo de esperar mais de uma hora no aeroporto porque não agüentou assistir ao bate-boca entre um passageiro que perdera o vôo e o atendente, ambos explodindo de irritação. Para acabar com aquele "clima ruim", cedeu seu lugar para o Rio de Janeiro. "Vou no próximo, é ponte aérea, não demora nada", afirmou para interlocutores totalmente atônitos.
Não que esperasse alguma coisa em troca da sua gentileza. Já tinha ouvido falar do tal profeta do Rio, aquele que dizia que "gentileza gera gentileza", mas nem com relação a isso alimentava muita expectativa. Agia dessa maneira simplesmente porque achava correto.
Como achava correto dar bom dia e boa tarde, apertar o botão do elevador para os demais passageiros, abrir a porta do carro para as mulheres.
Também não achava correto fechar o vidro na cara daqueles maltrapilhos que vinham pedir esmola no semáforo ali na esquina da sua casa. Até conhecia alguns, sempre dava uns trocados, por isso não estranhou quando o homem se aproximou com a cabeça coberta por um cobertor imundo e encostou no carro, como que pretendendo limpar o pára brisa, com um paninho mais imundo ainda. Abriu o vidro apenas para dizer que não precisava limpar o vidro, que de fato não seria limpo mesmo, porque iria dar a moeda para o homem de qualquer jeito.
Não deu tempo de dizer nada, porque por debaixo do cobertor surgiu a outra mão do homem, com um caco de garrafa pontiagudo.
O corte pegou da boca até a orelha, quase talhando a jugular, passando perto do olho.
Conseguiu chegar ao hospital tempo de estancar a hemorragia, levou dezenas de pontos, quase sucumbiu a uma infecção, mas já está em casa, sem poder falar.
É meio perversa a minha curiosidade, mas queria saber o que ele pensa agora a respeito da cordialidade.
É difícil saber qual é o limite da bondade (e da maldade) humana.
Luiz Caversan, 52, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa.
Era um homem cordial. Fazia questão disso. Adorava ser educado, usar palavras gentis, dar preferência, ter compostura. Adorava a palavra compostura.
Na fila do banco, do supermercado, numa loja, na padaria, sempre olhava para ver se tinha algum idoso, alguma mulher, uma grávida quem sabe, com quem pudesse ser gentil, a quem pudesse ceder a vez.
No trânsito, costumava ser insultado com freqüência, porque vivia deixando qualquer um passar na frente, esperava aquela velhinha atrapalhada estacionar sem pressa, nem chegava perto dos motoboys, parava no sinal ainda amarelo, nunca ultrapassava a velocidade permitida. "Sai da frente, mané! Roda presa!", ouvia, e deixava para lá, com um sorriso superior, de quem sabia exatamente o que estava fazendo e fazia exatamente o que queria fazer: ser correto, gentil, sem estresse, tentando provar para ele mesmo, para sua família e para o mundo que, sim, o homem é basicamente bom. E o brasileiro, particularmente, é cordial, o Sergio Buarque de Hollanda estava certo...
Houve um dia que chegou ao cúmulo de esperar mais de uma hora no aeroporto porque não agüentou assistir ao bate-boca entre um passageiro que perdera o vôo e o atendente, ambos explodindo de irritação. Para acabar com aquele "clima ruim", cedeu seu lugar para o Rio de Janeiro. "Vou no próximo, é ponte aérea, não demora nada", afirmou para interlocutores totalmente atônitos.
Não que esperasse alguma coisa em troca da sua gentileza. Já tinha ouvido falar do tal profeta do Rio, aquele que dizia que "gentileza gera gentileza", mas nem com relação a isso alimentava muita expectativa. Agia dessa maneira simplesmente porque achava correto.
Como achava correto dar bom dia e boa tarde, apertar o botão do elevador para os demais passageiros, abrir a porta do carro para as mulheres.
Também não achava correto fechar o vidro na cara daqueles maltrapilhos que vinham pedir esmola no semáforo ali na esquina da sua casa. Até conhecia alguns, sempre dava uns trocados, por isso não estranhou quando o homem se aproximou com a cabeça coberta por um cobertor imundo e encostou no carro, como que pretendendo limpar o pára brisa, com um paninho mais imundo ainda. Abriu o vidro apenas para dizer que não precisava limpar o vidro, que de fato não seria limpo mesmo, porque iria dar a moeda para o homem de qualquer jeito.
Não deu tempo de dizer nada, porque por debaixo do cobertor surgiu a outra mão do homem, com um caco de garrafa pontiagudo.
O corte pegou da boca até a orelha, quase talhando a jugular, passando perto do olho.
Conseguiu chegar ao hospital tempo de estancar a hemorragia, levou dezenas de pontos, quase sucumbiu a uma infecção, mas já está em casa, sem poder falar.
É meio perversa a minha curiosidade, mas queria saber o que ele pensa agora a respeito da cordialidade.
É difícil saber qual é o limite da bondade (e da maldade) humana.
Luiz Caversan, 52, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa.