O sangue escorria, lento, pelo nariz. Pingava na camisa, mas ele havia desistido de conter o fluxo. Não conseguia tocar o nariz. Talvez quebrado, doía insuportavelmente. Tinha os olhos vermelhos, cheios d'água. Sua cabeça parecia encharcada. Fosse pelo sangue, pelas lágrimas, pelo suor ou pela chuva que caía fina, bem fina. Quase uma garoa imperceptível. E o frio. O frio torturante que fazia naquela tarde de domingo, quase noite. Naquela rua já molhada, quase deserta. Ele tentava, com dificuldade, manter-se de pé na calçada. Tentava manter-se de pé, conter o sangue e lembrar. Fazia um esforço enorme para lembrar, mas não conseguia. Sentia muita dor. Por dentro. Por fora. O fluxo, as gotas, a garoa fina. Abria os olhos o máximo que podia. Tentava enxergar além da calçada. O outro lado da rua. Tentava enxergar não sabia exatamente o que, mas abria ao máximo os olhos, fazendo cair as lágrimas que insistiam em correr, misturando-se ao suor. Procurava alguém, ou talvez não quisesse ver ninguém. Melhor, preferia talvez que ninguém o visse ali, naquele estado. Não que ele soubesse propriamente o estado em que estava. Mas podia sentir. Sentia fundo, e sofria. Houve um momento em que as pernas não conseguiram mais. Num movimento instintivo, tentou apoiar-se em algo, mas na larga calçada só havia ele. Nenhum poste, nada. Alguns passos para trás o fez bater contra a parede de um bar, fechado àquela hora. Apoiou-se. Respirou fundo, quase feliz por não ter caído. Mas ao respirar, sentiu as costelas. Também doiam. Queria lembrar. Por que? Onde? Quando? Não conseguia. A dor fazia com que não sentisse muito o frio, que prometia uma noite gelada, naquela que os jornais noticiariam na segunda-feira seguinte, como a tarde mais fria na cidade, nos últimos 40 anos. Foi preciso que se passassem 40 anos, pra que fizesse um frio tão intenso, que o encontraria então, naquela calçada, naquela tarde de domingo deserta e tão fria, e ele tão machucado e tão perdido que não conseguia lembrar. Por que? Onde? Quem? Quem, enfim? Abriu os olhos o máximo que pôde. E encostado contra a parede, deixou-se cair, lentamente, até que tocasse o chão. O vento parecia mais forte agora, no chão. Abriu os olhos o máximo que pôde. Ninguém passava. A rua já molhada, agora totalmente deserta. E um poste à sua frente, do outro lado da rua, acendeu sua luz. Ele viu. Contra a lâmpada do poste, pôde ver os finos traços brancos da garoa que caía agora um pouco mais forte. Um vento gelado soprou no seu rosto, agora já quase sêco. Queria lembrar. Sabia que precisava lembrar, e pensava. Para logo em seguida, parar de pensar, pois parecia que quanto mais pensava, mais a dor aumentava. Sem muita consciência disso, queria que a dor parasse. Queria que o frio parasse, que a chuva parasse, que o dia terminasse logo e ele pudesse, enfim sair dali. Mas pra onde? Sair dali. Do frio, da chuva. Daquelas dores, do sangue que escorria, secando sobre seus lábios. Foi quando, abaixo do poste, do outro lado da rua, uma figura pequena, começou a tomar forma. Parecia um vulto, que ele não sabia se saía de trás do poste, ou mesmo brotava do chão. A figura crescia e tomava forma à sua frente, do outro lado da rua. A chuva caia pesada agora e a figura sem forma parecia crescer cada vez mais. Parecia chegar cada vez mais perto dele. Um hálito quente e familiar aproximou-se do seu rosto. Disse alguma coisa. Sentiu um toque leve na sua testa, e um jeito de mexer nos seus cabelos, que o fez reconhecer e enfim, lembrar.
26.8.09
Capítulo I - A tarde mais fria...
Esse vai para livro, aprovado. Abraço