Começa


Traz pra mim o café na cama. Não precisa suco. Um café preto tá de bom tamanho. Eu quero ficar pensando um pouco mais em tudo o que não tem deixado em paz minha cabeça, já sem muito cabelo. Mas nenhum branco, por enquanto. E lembro de minha irmã perguntando se eu pintava o cavanhaque. Nossa, mas parece tão preto. – Ela admirava. Por enquanto ainda não pinto, não. Nem pretendo nunca fazê-lo. Tem momentos, como estes de agora, que tudo que quero é pensar menos. Ficar na cama, não exatamente vegetando, mas descansando a cabeça de tantos pensamentos, tantos deles absurdos. Então eu prefiro um café preto puro. Compro aqueles aromáticos e misturo com o pó de café comum, bem mais barato. Mas o sabor, o cheiro do outro mais especial fazem toda a diferença. E eu fico um pouco mais na cama depois de acordar. Ouvindo música no tocador e tomando café preto e uma réstia de sol fraco entra pelos furos da veneziana da janela e o dia promete ser quente, embora não prometa muito sol. Mas a gente sempre quer mais calor, mais luz, mais gente na rua, gente na calçada, gente na padaria, gente nas lojas mais caras da cidade, que francamente, eu tô cagando. Começa o dia mais ou menos em paz. E tenho precisado tanto de paz. E ela tem fugido de mim como uma virgenzinha escrota pudica safada hipócrita. Assim como as velhinhas nos taxis em dias de chuva. Mais um tempo na cama antes de levantar, ouvindo baixinho as músicas mais tristes, que são as que eu mais gosto. Não é de agora, não. Sempre foi assim. Mesmo nas épocas mais felizes e de mais paz. Sempre foi assim. Então talvez se eu pensasse menos. Se eu ouvir mais as músicas tristes e ficar um pouco mais na cama, olhando o brilho do sol entrando pelas frestas, então é um começo de paz que vem despontando e eu ameaço um sorriso pequeno que abre gigante depois que o telefone toca. E eu ouço aquela voz que ouvi a dias atrás e ela é nova. É cheia de alegria e vida e só de ouvir, mesmo sem ver, eu sei que ela fala sorrindo. Eu posso até ver, mesmo de olhos fechados, ouvindo aquelas músicas tristes que eu tanto gosto. É mesmo aquela conversa tonta, cambaleante, de quem não se conhece direito, mas que quer tanto, espera tanto. E ainda de olhos fechados, percebo que o sol agora explode pelas pequenas frestas da janela e parece querer entrar a força no quarto, como uma bomba atômica numa contração de parto, querendo dar à luz uma criança cheia de vida e alegria e aquele sorriso que toma toda a voz. A voz que ouço agora, de olhos fechados, ao telefone, que tocou justo no momento da música mais triste, da melodia mais cortante e dolorida. Porque já doeu muito. E eu já chorei muito. Ainda não secou, mas eu chorei muito. Mas agora eu quero a explosão daquele sol entrando pela janela. Quero a bomba atômica parindo. Quero aquela voz cheia de sorrisos. Quero aquele perfume novo, que eu seria capaz de reconhecer a quilômetros de distância. Eu quero o dia cheio de luz e de gente e de calçadas e de cachorros e de castanho claro. Da cor dos seus cabelos. Eu quero tudo isso que as músicas tristes me dão, pois me treinaram bem, enquanto eu chorava e esperava. Eu quero tudo isso agora. Não amanhã e nem depois. Eu quero agora. Começa.

0 Response to "Começa"