O tiro não dói só em quem recebe

O crime que vitimou o dramaturgo Mário Bortolotto no último fim de semana em São Paulo, de certa forma atingiu a todos nós. Seja você próximo dele ou não. Amigo, admirador, ou não. É a violência que já chegou na nossa porta há muito tempo. E ela está nos intimidando. E isso é tão fatal para nós quanto os tiros que "estamos levando".

Torço fortemente pelo Mário. Pelo artista que é, pelo ser humano que é, como qualquer outro. Ele sai dessa, com certeza. Esta triste história me lembrou uma semelhante, ocorrida com um amigo, que me levou na época, a escrever o que você lê abaixo. Peace:


À queima-roupa

Foram dois tiros pelas costas. Mas não sentiu dor, apenas um susto quando as balas estilhaçaram o vidro de trás do carro. Não sentiu dor, mas uma ardência que ele pensou serem os cacos de vidro espetando suas costas. Ele viu os caras se aproximando pela traseira do carro e viu, de relance, as armas. Foi tudo rápido, um reflexo. Não houve voz, não ouve comando, não deu tempo a eles. Pisou fundo no acelerador. Os pneus cantaram e uma fumaça preta subiu o cheiro de queimado da borracha. Não pensou em nada, queria fugir dali. Nada à sua frente. Branco. Vermelho. Queimado. Vidro. Foram dois tiros pelas costas. Não houve dor. Uma ardência leve no braço direito que recebeu uma bala de raspão. Uma ardência mais forte perto da nuca que recebeu uma bala em cheio. Ele viu o vidro da frente se quebrando. Ouviu o barulho da clavícula se partindo. Era a bala que saía pelo pescoço. Não houve dor. Ouviu gritos, buzinas, sirenes, branco, vermelho. Como é seu nome? Não lembrava, não conseguia. Não sentia dor, apenas cansaço, queria fechar os olhos. Dormir. Não conseguia, os olhos abertos o tempo inteiro. Queria enxergar, queria entender, queria lembrar. Deitou-se, era macio, branco, vermelho. Respirou fundo e conseguiu fechar os olhos. Lembrou-se dela. Sentiu uma dor insuportável. Profunda. Suor, roupas rasgadas, vermelho. A dor o fêz gemer. Sentiu uma mão tocando sua testa, seus cabelos, seu suor. Abriu os olhos e a viu chorando. Sorriu. A dor aumentou desesperadoramente. Olhou nos olhos dela e finalmente chorou.

1 Response to "O tiro não dói só em quem recebe"

  1. pablo speranza Says:

    comparto una lágrima