Ferro

Os músculos doem
a cabeça vaga
a boca seca
a perna bamba
o suor escorre
os olhos fecham
os dedos teclam
os dedos cansam
os amigos chegam
os abraços provam
os músculos doem
e a vida segue.

Para Otávio

Inapto

Não tenho a capacidade de esquecer. Sufocar. Exterminar as lembranças. Apagar as marcas como um ácido que não atinge o seu alvo. E se espalha no ar como uma peste negra e silenciosa atingindo os incaltos à sua volta e assim revivendo em todos eles. Todos iguais. Todos perfeitamente capacitados, marchando em ordem e sincronismos perfeitos como um estudado balé de zumbis. Não tenho esta capacidade. Reconheço. A profunda inaptidão e teimosia que se rebela contra todos os avisos. Todas as placas. Todos os alarmes. E ignora à pedradas os tolos que ainda me advertem.

Boa semana

Sob o céu de Saigon

(...) Uns cem metros além, ela pela alameda Tietê, ele pela Santos, esse rapaz e essa moça, ou talvez os dois, ou quem sabe até mesmo nenhum, mas de qualquer forma ao mesmo tempo, pensam vagos e sem rancor mas estes sábados sempre tão chatos, porra, nunca acontece nada. Por associação de idéias nem tão estranha assim, ele ou ela, ou nenhum dos dois, talvez olhem ou não para trás procurando quem sabe algum vestígio, um resto qualquer um do outro pela rua Augusta deserta do sábado à tarde.

Caio F.

Don Bosco


Duas garrafas de Don Bosco depois, levantou da cama sem notar o lençol manchado de vermelho. Caminhou lento até a cozinha e, surpreso, se perguntou se sempre estiveram ali aqueles azulejos amarelos. Não saberia dizer que horas eram, mas tudo parecia ainda escuro. Tentava focar em redor mas não enxergava as coisas com nitidez. Descalço, pisou em algo que furou se pé. Gritou. Xingou. E a cabeça doeu. Puxou o caco de vidro da carne e gritou ainda mais. Xingou novamente. Um cheiro estranho passou pela sua cara. Não era doce. Não era familiar. Mancando, voltou à sala, tentando enxergar. Tudo escuro. O cheiro mais forte ainda. Acre, de repente familiar. Reconheceu-o e um certo temor surgiu, mas não sabia o porque. Pisou em algo frio, escorregou e caiu, amparando-se na estante de ferro, machucando o pulso direito. O cheiro, insuportavelmente próximo, líquido, pegajoso, revelador. Próxima a ele, caída no chão, ela, nua, alguns cacos de vidro em volta e um corte profundo atravessando todo o pescoço, que ainda mantinha a delicada gargantilha de prata, com um pingente de anjo.

80 anos

Gritando em Tupi

Imagine que você pudesse matar (realmente) todos os seus desafetos. Matar, livrar-se do corpo e da culpa e a partir disso viver uma vida feliz, tendo por companhia apenas aquelas pessoas a quem você quer bem. Às vezes dá uma baita preguiça de viver e conviver com algumas pessoas. Tá certo que não sou daqueles mais fáceis de se conviver, mas acho que tenho noção se desagrado, a quem desagrado, e acima de tudo, acho que sei respeitar os outros, de um modo geral. Talvez por isso não me considero pedra no tênis de ninguém. É que con-viver hoje em dia tá muito difícil. Numa época de magros, bem-sucedidos, milhagens bombadas, sucesso, dentes brancos, sexo quantitativo (com segurança, claro) hipócritas do caralho, se se foge um pouco a algumas destas regras, você é um peixe fora d'água. Ou um índio sem tribo, gritando em tupi, perdido no meio da mata fechada de Copacabana à época do descobrimento. Imagine-se no Posto 6, cercado de verde, ouvindo as ondas quebrarem pertinho, ali na curva, sobre as pedras do Forte. Pois é. Tá difícil. Querer muito tato e um pouco de malandragem viver uma vida o mínimo saudável por estes dias tão distantes do descobrimento, mas onde descobrimos outras coisas tão mais penosas. Tô sendo muito pessimista? Ok, eu nunca fui muito otimista, mesmo. Mas tô longe de ser fatalista. Apenas não tenho muito saco pra me enganar, ou aos outros, o que é bem pior. Talvez seja um lampejo de serenidade e consciência, e isso é bom. Me dá um respiro pra seguir andando, porque ainda tenho muitas risadas pra dar, apesar da velha Urtiguisse que me acompanha. Acabo de ler no blog do Otávio, que menciona a "apatia desoladora das relações virtuais". Essa apatia me enche de preguiça. Não só a mim, mas talvez a você também, que me lê agora. Um mínimo de tentativa sã de levar esta atual vida doida e rasa pode ser um preventivo a esta apatia. Então, me deixem de fora destes joquetinhos de conquistas e projeções baratas, de gente barata, pela rede mundial de computadores. Me deixem de fora desta cultura plástica de gente sem alma, trajando um incrível corpão. Eu quero sim, o onírico, mas que tenha a força de uma boa mordida no pescoço.

Weekend in Rio (é pá-pum)

Bergman (Ode aos Clássicos)

Hiato


Tira daqui este intervalo. Este hiato. Este túnel de neon azul onde pairo suspenso, lento, sem nunca pôr o chão nos pés. Sem nunca chegar ao final. Sim, pois vejo a luz. No final. Mas pairo, suspenso, flooting, sem ar, sem voz, sem mãos. Atadas. Tira de mim este espaço de tempo. Esta breve lenta interminável viagem. Onde não chego. Onde não chegas. Quero cortar o espaço, veloz feito uma flecha incendiada que viaja reta, rápida, certeira. Sem titubear ao seu destino. Um sibilo. Um segundo. Um respiro.

"Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste..."

Vinicius de Moraes

Olho roxo

Fiquei um bom tempo sem sair, fantasiando que as contas não entrariam na caixa do correio. Ou que a faxineira limparia o chão sem que eu precisasse levantar os pés. O lance de não sair requeria uma certa tolerância com aquele cara estranho que acabava de sentar na minha mesa e tomava o meu lugar. Pois bem, agora quando você me ligar, lembre-se, estou na rua. Não acredite em nada o que disser a voz que vai te atender. É ele, não sou eu. Fui pra rua, pois conheço a força do meu braço e não quero ir trabalhar amanhã de olho roxo.

Caim e Abel


"Nós sabemos muito bem que os irmãos se odeiam desde que Caim matou Abel." Esta é uma observação do ator Walmor Chagas sobre seu personagem na segunda temporada da série Filhos do Carnaval. Tomazio Gebara, o irmão inválido de Anésio, que surge após a morte do patriarca da família com o propósito de se vingar de seus descendentes. Assisti a dois capítulos da primeira temporada, agora reprisada nas véspera da estréia da segunda, e fiquei impressionado com a qualidade da produção. Personagens tão complexos quanto verdadeiros, zero de esteriótipos, texto, enquadramentos (o velho clichê: parece cinema?!) Mais do que isso. É como gostaríamos que fossem as produções de ficção na TV brasileira. Por que não acabar de uma vez com as novelas, por exemplo, que surgiram aos borbotões após a entrada da Record na briga, e fazer tantas séries de ficção quantas a grana permitir? Mantendo-se a qualidade, pois é esta que difere uma da outra. Quem tiver HBO, recomendo não perder Filhos do Carnaval. Confesso que me impressionou.

Vou adaptar aqui a frase do velho Walmor: Nós sabemos muito bem que os irmãos se odeiam (e se amam) desde que Caim matou Abel. Acredito ser assim a relação entre irmãos. Partindo do mito de Caim e Abel, no qual o irmão enciumado mata o outro por ser preterido, percebo não ser só isso as relações entre irmãos. Como mito, a história dos irmãos bíblicos deve ser fatalista, pois requer representatividade, estigma. Mas a realidade é diferente. É de ódio e amor, na maioria das vezes. Por mais que hajam diferenças entre irmãos, personalidade, caráter, prevalece sempre a força da consangüinidade falando mais alto, ou mesmo superando estas diferenças. Claro que há os casos extremos (voltando ao mito) trágicos, mas mesmo nestes, analisando mais friamente, podemos perceber o quanto o parentesco é superior. Pois quem chega ao extremo de pôr fim a vida de um irmão, estará irremediavelmente condenado, antes de tudo, por si mesmo.

Pessoamente tenho alguns exemplos desta máxima, na qual os irmãos se unem, apesar das diferenças. Ninguém é a mesma pessoa durante a vida, isto não é novidade pra ninguém. E as vezes, aquele irmão distante, ou mesmo que não nos é simpático, mesmo este, pode nos surpreender quando "volta" sinceramente arrependido desta ou daquela forma que nos tratara anteriormente. Repito, ninguém é a mesma pessoa com o passar dos anos. E acredito que ninguém retrocede. Então, fatalmente devemos crescer, evoluir. E o que mais é o amor, senão a representação de algo sublime em nós, tão imperfeitos? Há ainda quem diga que os amigos são a família que escolhemos. Digo mais, os amigos (verdadeiros) são os irmãos não consagüineos que nos acompanham. Me considero um privilegiado por ter alguns assim. Pessoas que a exemplo de um irmão de sangue, podem voltar (se um dia tiver te deixado), podem te socorrer, e acima de tudo, podem te amar incondicionalmente, porque houve ali um encontro de almas, acima de qualquer outra convenção. O que na verdade, talvez explique a força que um irmão de sangue pode representar. Porque acima do parentesco físico, o que prevalece é a irmandade da alma. Mas isto é um outro mistério.

Droids

Motherfucker

Não se engane, no fundo a gente sempre sabe o que quer. É que na maioria das vezes nos enganamos, mesmo. Pedimos pizza em casa, quando tudo o que se quer é a falta de memória dos peixes. A alegria dos idiotas. E a paixão muda das putas. Solicitamos serviços de terceiros e deixamos o telefone tocar, sem fim. Não se engane, quem te ama verdadeiramente, não vai te perdoar. Se você não o fizer primeiro. Porque é tão mais normalzinho sorrir. Porque é tão mais bonitinho entender. Você abre a janela, sente o vento quente que entra, e alguém na calçada acena: Bye, motherfucker... Aí sim, você acredita que ainda tem sangue nas veias.

O dia em que São Paulo parou


"Se esta brincadeira chamada Oscar tivesse um mínimo de seriedade, Andréa seria candidata ao prêmio de atriz.

Se Salve Geral chegará ou não até o Oscar é totalmente irrelevante. Na verdade, aquela festinha cafona de Hollywood sequer o merece. E, para quem pergunta se “é esta a imagem que o Brasil quer mostrar lá fora”, vale dizer que Sérgio Resende é cineasta e não agente de turismo. E que o cinema brasileiro não é a Embratur."

Celso Sabadin - Cineclick

– E ainda tem Otavião em cena. Doido pra ver!!

Sonhos


Há cerca de um ano que tenho um sonho recorrente. Ando por uma praia, quase madrugada, dia amanhecendo. Alguma praia do Sul, mas não sei qual. Uns metros à frente, sentada numa cerca, uma figura familiar, me espera chegar. Sei quem é, o que representa e o que sugere este encontro. Sei, mas não vou dizer aqui. O que importa, é o quanto este sonho começa a fazer sentido, principalmente este ano, em que tantas coisas e pessoas bacanas têm acontecido. Digo acontecido e não aparecido, porque cada vez mais tenho a certeza de que as coisas boas não aparecem, simplesmente do nada, na nossa vida. As coisas bacanas, que valem a pena e te fazem crescer, elas surgem porque se batalha por elas. Se luta por elas. Falei aqui outro dia, que não existem deuses entre nós, nem fatos mirabolantes que, do nada, te levam pra Suíça, Paris, Amsterdam, escolha o destino que mais achar incrível, e entenda o que quero dizer. Pois bem, as coisas bacanas que surgiram este ano, só surgiram porque me empenhei por elas, acreditei nelas, e principalmente em mim também, o que é bem difícil. É uma espécie de poder que se têm, que as vezes não nos damos conta, mas que temos, todos nós. Poderia citar nomes, fatos, coisas, mas não precisa. Nem seria ético citar pessoas que não pediram para serem citadas, porém, umas mais, outras menos, todas me ajudaram. Me ajudam, até hoje. Acredite você no que quiser. Anjos, duendes, deuses, deusas, tudo é válido, se vai te fazer acreditar em você mesmo, e a partir daí criar condições pra que atinga o seu objetivo, seja ele qual for. Quando ando naquela praia, ao encontro de alguém que não está mais aqui, mas em algum lugar, ainda esperando, não penso em adiantar este encontro. Pelo contrário. Pra que eu chegue lá, preciso estar feliz, pleno. E isso são coisas que só a realização te dá. Este caminhar está apenas começando. Como disse, o dia ainda está nascendo. E com ele, todas as possibilidades, todas as coisas incríveis que já estão acontecendo, não porque eu sentei na areia e fiquei olhando as ondas quebrarem na praia. Mas porque eu caminhei, e ainda caminho, em direção à felicidade.