Illuminated

sinto minto

As mentiras em que mais caimos são aquelas que nós mesmos nos contamos.

Ya no se que hacer conmigo

Caio F.

Não, você não sabe, você não sabe como tentei me interessar pelo desinteressantíssimo.

Porque ela é foda

trafegava com uma viatura da polícia a minha frente e um carro da CET atrás > sabes bem: não tenho carteira > não achei ruim, porque, de certa forma, estar cercada pela lei poderia me manter longe de acidentes > pararam violentamente, tiraram-me do carro à força - estavam armados - pagaram cervejas, deram-me conselhos > sim, amor, falaram de ti.

AQUI

O clone


Tô a fim de fazer um clone meu. Não deve ser coisa muito complexa hoje em dia. Talvez tivesse que esperar um pouco, mas nada que demorasse muito, pois tenho certa urgência. Tenho um amigo num laboratório da USP, que já incumbi de fazer umas pesquisas, tal. Entreguei a ele, num saquinho plástico, uma antiga tampa de canetas BIC, que durante muito tempo usei para limpar os ouvidos. Acredito que o objeto, depois de tanto tempo em contato com minhas secreções auditivas, seja o suficiente para um começo de tentativas, análises, estudos de seja lá o que for necessário para dar início ao projeto. O outro eu. No intuito de acrescentar algumas singelas alterações no dito cujo logo no início do processo, vou solicitá-las. Em se tratando de um projeto, que embora sendo uma cópia minha, pretende-se totalmente novo, nada mais justo do que pelo menos tentar essas pequenas alterações. Nada muito drástico e que fuja muito do original, afinal trata-se de um clone, e como tal, deve me substituir. Seriam duas pequenas alterações, só pra deixar o clone mais coerente e enxuto, se posso chamar assim. Ele poderia só ter o nariz um pouquinho menor e o pau um pouquinho maior que os originais. Claro, muito sutilmente, nada que destoasse visivelmente do seu original, no caso, eu. Tendo um clone à minha disposição, seria uma forma de dividir um pouco a sobrecarga de todas as atribuições que normalmente a vida me impõe. Claro, consciente das obrigações que me cumprem, não estou aqui querendo simplesmente me eximir delas. Apenas acho que seria uma forma de conseguir um pouco mais de descanso, e não me refiro apenas ao esgotamento físico, natural com o passar do tempo, mas talvez principalmente ao repouso e refazimento mental. Imagino que um outro eu, nas atuais circunstâncias, seria de extrema utilidade e só me traria alegrias. Principalmente se viesse com essas pequenas alterações que pretendo. Seria magnífico. Imagina, um outro eu, que seria muito mais útil e faria muito mais sucesso do que o original, modéstia a parte, já faz. Seria de extrema utilidade nos momentos, por exemplo, em que quero ficar preguiçosamente em casa à noite, simplesmente vendo TV, ouvindo música ou mesmo escrevendo. Esta cópia mais perfeita de mim mesmo sairia por mim nestas ocasiões. Poderia cumprir facilmente uma agenda social, visando claro, meus interesses, de quem mais? E nem poderiam, os mais conservadores e puristas, me acusarem de abuso de poder, ou escravidão, posto que ele mesmo seria um outro eu. E ele (ou eu) só teria vantagens. Além daquelas que já mencionei, ele aproveitaria todos os momentos de prazer que eu, por alguma razão, não estivesse disposto a desfrutar naquele momento. Ou tivesse coisa bem melhor a fazer, claro. Um clone só me traria vantagens. Além dos eventos sociais, ele poderia ir fazer um trabalho, por exemplo, enquanto eu ficasse em casa, executando outro. Poderia ir na academia por mim, num dia que eu quisesse ir à praia. Poderia ir ouvir o desabafo aquele amigo que me solicitasse algumas horas de atenção, enquanto eu ia tomar chopp com outro amigo e só falar merda, por exemplo. Claro que estes amigos não poderiam se falar depois, ou menos ainda, se telefonarem nestes momentos. Já pensou? Ambos dizendo estar comigo, em situações tão diferentes? São só vantagens. Só de pensar já torna mais firme a minha convicção de que um clone é tudo o que preciso neste momento. São muitas atribuições, solicitações e coisas que quero fazer e conquistar. E convenhamos, um outro, um pouquinho mais perfeito que eu, só teria a acrescentar nas minhas conquistas de vida.

Globo Esporte

De que me interessaria esta TV sem som à beira da calçada? Nada, se só o que vejo agora é a sua blusa xadrez se abrindo para as minhas mãos. Penso que você poderia baixar amanhã no hospital, tamanha a minha vontade de provar que posso deixar marcas que te levariam ao PS mais próximo, num domingo à tarde.

Leo

Leo não consegue mudar o mundo
Porque o mundo não comporta a fantasia de Leo
Porque Leo não aprendeu a real
Leo pensa que o mundo é bom
Leo pensa que o mundo ama a gente

Leo pinta, rabisca, desenha
Escreve tudo o que queria
que o mundo fosse
O mundo não conhece a alma de Leo
Porque Leo tem várias
E nenhuma delas do mundo
E nenhuma delas aceitáveis
Porque Leo não sabe viver mentindo
E por isso o mundo não entende Leo

Mas Leo entende o mundo
E por isso é pena viver nele
Leo pinta, rabisca, desenha
Escreve o mundo azul de novo
Porque Leo sabe que o mundo
há muito tempo deixou de ser azul

Se um dia o mundo parasse e olhasse para Leo
talvez o mundo mudasse
Então Leo não precisaria mais se esconder
Nem pintar, desenhar, escrever
Mas aí Leo deixaria de acreditar

E se isso acontecesse
então coitado do mundo
Ele jamais conheceria a alma de Leo.

uma tragédia carioca

Ultimamente, e isso acontece quando demoro muito a voltar, tenho tido um certo estranhamento em relação ao Rio. Nem tão aprazível assim, balneáreo onde eu naisci. Não escrevi errado não, apenas pontuo a pronúncia carioca ao verbo nasci. Aliás o medo de escrever errado também, ultimamente, tem se mostrado um martírio. Outro. Explico o estranhamento: é como aquela sensação que se tem quando observa-se grandes aviões taxiando na pista antes de voar. Os grandes, os vôos internacionais, os vôos sem volta, alguns. Porque também é normal não voltar. Tenho lido muito, tentado muito e constatado muitíssimo. Aprendi muito nos últimos meses em que não voltei ao Rio. Forço-me aqui. Forço-me no exílio e não me refiro somente ao estado de nascença, não. É um exílio por vezes muito pior e mais profundo e mais cruel do que apenas não pegar um vôo. Tem uma crônica, ou tragédia, ainda não sei, carioca, que insiste em não sair. Me pego emaranhado na história do Cosme Velho, que testemunhei a tantos anos atrás e que tento agora, reproduzir. Mas o Rio me trai de volta. Ele não perdoa a minha traição de amante sacana, que fode pra doer, porque sabe que assim o faz melhor. E que assim se faz inesquecível. Porque o que dói não se esquece, por vezes até se ama. Loucamente. O Rio não me perdoa e não me entrega de bandeja nas mãos a história que quero contar. Porque enlouquecer, ultimamente, tem sido tão prazeroso quanto elucidativo. E isso me faz melhor. Cruelmente melhor, embora não me impeça de sofrer. Pois eu prometo te enfrentar, e sim, perdoar a sua marra tão típica. Porque quem não perdoa adoece. E eu queria tanto que você me visse assim, feliz e crescido e coerente. Meu Deus, enfim coerente. Eu queria tanto que doesse em você algo escrito por mim. Tanto ou mais do que dói em mim mesmo. Eu prometo te enfrentar e declarar meu amor de amante arrependido. Eu prometo arrancar de você a história que me deve. Porque nós dois, velhos sacanas, merecemos.

Horror Simpático

- Deste céu bizarro e nevoento,
Convulso como o teu destino,
À tua alma que pensamento
Desce? Responde, libertino.

- Insaciavelmente sedento
Do que não vejo e não defino,
Reprovo a Ovídio o seu lamento
Quando se foi do Éden latino.

Céus destroçados e tristonhos,
De vós o meu orgulho é fruto;
Vossas grossas nuvens de luto

São os esquifes de meus sonhos,
E vosso espectro a imagem traz
Do Inferno que à minha alma praz.

Charles Baudelaire

onde o pescoço se transforma em ombro

Como se fecha-la fizesse alguma diferença, antes que pensasse, um trem bala rompeu a porta do apartamento, destruindo tudo o que encontrou pela frente. A começar com a minha resistência em aceitar o fato de estar vencido. Não que fosse exatamente um bravo lutador, mas antes o cão vira-latas que foge da briga porque se sabe mais forte. Um ético imprestável. Pra que boas maneiras com quem já se mostrou de verdade? Os sentimentos sinceros, assim como as amizades, não requerem subterfúgios. Mostram-se nus, ainda que sujos, na calçada, debaixo da chuva e desprotegidos. Porque é isso que somos todos. Desprotegidos ridículos que se vendem auto-suficientes, poderosos e por vezes inescrupolosos, na ânsia derradeira de se salvarem. Do outro. Não ganha a luta quem resiste e sim o contrário. É na fragilidade que se demonstra força. Se pareço frágil é porque tenho coragem. Agora que me falta abrigo, só me resta aceitar o cinturão de campeão deste ringue de lençóis. Nesta casa destruída pelo furacão imenso que deixei entrar, embora obstruisse todas as passagens possíveis. Embora o medo fosse o gigante invencível que dormia pesado. O medo, que me transformava no escorpião virulento que ameaçava de morte quem o tentasse. Talvez tenha usado meu veneno contra mim mesmo, como um suicida que não quer morrer, mas apenas, nem que seja por breves segundos, como um rei soberano, experimentar o salto.

persona non grata

com aquele medo ridículo de quem vai tuitar bêbado. ou fazer confissões por e-mail para
Amsterdam, às 4 da manhã. com aquela sensação de ter sido enganado pela própria mãe. com a vontade de esmurrar a mesa daquele restaurante que jamais entraria, mas que se viu forçado a elogiar. com aquela cara que se faz ao dizer "sem camisinha não rola". com o aspecto de vencido ao fazer a matrícula na academia. com o desapego de se abraçar na esquina, sabendo que se vai embora. com o cheiro de quem ficou trancado em casa o dia inteiro, sem banho. e a constatação da mais profunda e patética saudade. porque ela não deveria ter vindo. inapropriada, ela não foi convidada, nem consta da lista dos vips.

black or white?

nota gastro/mental

Um copinho de Coca Cola
Um arrotinho
E tudo fica bem mais leve.

o cruel senhor



Estive perto de minimizar o empenho de te defender, quando percebi ser eu quem mais precisava de ajuda. Perante sua grandeza de mundo de recém-nato, não poderia partir em viagem contigo, carregando todos estes anos e bagagens às costas. Não sobreviveria à primeira encosta pedregosa que tivesse que subir, puxando à força, animais, utensílios e alguns poucos órgãos que me escapassem, espalhando pela estrada os restos do homem que fui um dia. Porque agora, ao me debruçar sobre aquela encosta que dá para a longa estrada que irás ganhar, percebo ser ela a serpente gigante e víbora que irá te roubar de mim. Mas não porque se deixas, e sim por uma ordem natural das coisas. Do tempo. O que é o tempo senão o mestre caprichoso que não fornece guarida a nenhum aprendiz? O tempo, o senhor que dá e rouba. O tempo, a meretriz que ensina e abandona. Vejo meus dedos encarquilhados, tortos na fome dos anos que insistem em passar. E a vergonha me impede de estendê-los num adeus, ao menos. Não quero que os veja ao olhar para trás e deparares com o velho na encosta a despedir-se de ti. Meu pequeno amor. Meu pequeno pedaço que deixo ir. Meu fiapo de juventude que tentei aprisionar. Mas não se aprisiona os pássaros daquele senhor. O tempo. Ele se encarrega de abrir todas as gaiolas e liberta todos os seus recém-natos, antes que possamos chamá-los de filhos, irmãos, amores. Agora vejo que se vai. E percebo que sequer vai olhar para trás. Para que? Para ver-me? Não podes. Impossível. Apenas eu consigo contemplá-lo na estrada. Pois nada mais é do que o menino que eu fui um dia e deixa agora para trás o velho na encosta. Sou eu. Sou eu mesmo que vou embora, e sou eu mesmo o velho a despedir-se. Diferentes momentos do mesmo homem, que aprendeu, sob o jugo daquele cruel senhor, o tempo, que não se pode impedir o vôo dos pássaros.

o último dia de mar


Chove no meu bolso e quando tiro a flor pra te dar, sai o peixe afogado que vem dar na praia, no último dia de mar. E todas as barracas de madeira seca, dispostas enfileiradas, formando um corredor, como velhos moais olhando o mar, sem um fim para o tempo de eternidade que lhes resta. Assistiremos junto deles este último dia, este espetáculo que o fim de tudo vai nos proporcionar. A chuva que não deveria estar ali. O peixe morto pela água que o fez nascer. Os moais cansados de tanto esperar. São os indícios deste último dia de mar. Sentamos com a calma de quem já se foi e vemos o último pingo da chuva equivocada, até ser vencida pelo sol que sai de trás das nuvens e caminha pela areia, até nos alcançar na platéia, bufões ridículos que somos, no lugar errado, a assistir este espetáculo. O último. O mar enfim se retrai, secando aos nossos olhos, enquanto vemos os peixes, que saltam sedentos pelo ar, num balé de agonizantes bailarinos. Um sopro de maresia venta então sobre nós, levando os galhos secos das barracas enfileiradas, como o último suspiro deste último dia de mar. O fim é mesmo desértico? Veremos talvez, aquela Caetana andando encarquilhada pela areia? Os cabelos secos e brancos voando pela maresia, antes do silêncio final? Sim, porque após aquela última lufada, a maresia também se cala. Ela também parece cansada, assim como os moais. É com certo alívio que os vejo enfim desabar de sua postura de vigia, após o fim daquilo que não precisam mais esperar. O mar agora é seco, juntando-se numa volúpia de morte à areia sob os nossos pés. O vento cessou. O sol ganha o espaço como verdadeiro e único rei de tudo que existe e de tudo o que irá enfim, pôr fim. Sentados à beira do que um dia foi praia, temos a visão privilegiada do fim que já esperávamos. Agora entendo a flor que não saiu do meu bolso. Agora entendo o olhar de inveja dos velhos moais.

assassino

Sem dúvida que preciso matar o minúsculo grão que ficou de você em mim. Sem dúvida, que embora minúsculo, ele cresce e sabe demais.

leminski

Comunique-se. Não nos deixe imaginando tuas dificuldades sem ter meios de te socorrer quando preciso.

o caminho de sua costela

Era uma menina que se chamava Nina. Menina, mas nem por isso tão ninfa. Tão distante do nascimento que se sentia às vezes tão velha. Mas bastava uma escovada, um espelho, um batom. Saía sempre sozinha, pois talvez fosse uma espécie de sina. Tinha uma saia vermelha que a avó dera. Talvez fosse o que enfim fizesse com que olhassem pra ela. Nina tinha uma espécie de irmão, parceiro, amigo e namorado. Tudo junto assim mesmo, em qualquer esquina. Fina, lenta e branquíssima, cruzava as coxas sob a saia vermelha. Ele tocava bem devagar. Sabia que ela não gostava de exasperações. Ele tentava sempre subir, mas ela pensava no catecismo e tinha lá suas convicções. Talvez ela tivesse medo, talvez ele não fosse físico, mas um medo de alma. Pois ele sempre ficava nu diante dela com impressionante calma. Coisa que ela não tinha. Uma fraqueza de rainha, embora fosse só uma Nina. Manias tão de menina que ele tentava fazer mais madura. Mas faltava muito. Ali, no meio de todo mundo, ele tocava sua coxa bem devagar, sem se fazer exaltado diante dela. Irmão, tinha a liberdade dos que amam sem explicar. Namorado, tentava dedo após dedo, alcançar suas costelas.

ÍTACA

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Poseidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te punhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Constantino Kabvafis

o profeta


Em 2005 o diretor Jacques Audiard realizou o filme De Tanto Bater Meu Coração Parou, que contava a história de um rapaz de 28 anos em um momento divisor de águas: seguir o caminho corrupto do pai, ou o lado virtuoso da mãe, pianista. Na maior parte do filme, vê-se este protagonista numa luta constante entre livrar-se da influência negativa do pai e entregar-se ao talento herdado da mãe. É um filme de violência plástica, cenas luminosas e música clássica, numa Paris colorida e musical. Corta para o rosto de César Luciani (Niels Arestrup), espumando o seu ódio diante de Malik El Djebana (Tahar Rahim), o jovem árabe que ele toma como seu protegido e ascecla. Niels Arestrup é o mesmo pai de De Tanto Bater, aqui num desenho magistral do mafioso e líder corsa, César Luciani. Malik é preso condenado à seis anos, em circunstâncias não muito explicadas. Sem “origem”, sem parentes, nem passado, é jogado numa cadeia dividida entre as facções dos árabes “sujos” e dos ítalo-franceses, liderados por Luciani. Talvez necessite assistir novamente à O Profeta. Não é um filme de fácil aceitação e muito menos digestão. É um filme sem heróis, ou antes, de muitos heróis. O fato é que, levados pela direção de Jacques Audiard, não conseguimos uma empatia com seu protagonista e principal “herói” desta jornada. Talvez eu tenha pecado em, na falta deste herói, ter-me detido à interpretação do incrível Niels Arestrup. É o tipo de composição de personagem em que quase pode-se sentir o cheiro de sua persona, tamanha é a veracidade que o ator consegue nestes casos. E sem dúvida, o cínico mafioso é um legítimo representante desta classe. Mas voltando ao protagonista anti-herói Malik, assistimos sua escalada dentro de uma organização (a ítalo-francesa), sem esquecer sua origem árabe. Aprendendo com seu protetor e master bandidão César Luciani, o jovem Malik rapidamente absorve o cinismo como única forma de sobreviver entre os dois mundos, e o pior, dentro de um espaço exíguo que é a prisão. Talvez não torçamos prontamente por Malik. Seu desenho e direção é composto justamente pra isso. Mérito de direção e roteiro. Mas aos poucos assistimos seu desfile fluídico entre aquelas paredes e aqueles homens já condenados por si próprios, como uma espécie de mérito alcançado por seu próprio esforço. Talvez Malik seja o único ali dentro que, apesar das circunstâncias, não se deixa entregar à sua condenação íntima, e em nenhum momento ele esmorece ou se considera sem salvação. Para sobreviver ele será capaz de tudo, matar sim, morrer jamais. Quero destacar a ambientação da prisão, que nos remete aos filmes de gângsters tão comum aos americanos, nos anos 70. Sem a sua plasticidade ascéptica, o que convenhamos, é muito mais interessante e próximo ao real, e em O Profeta, de suma importância para coerência da sua trama e tipos. E a já famosa “cena da gilette”, que antes mesmo de acontecer propriamente, nos oprime nos simples ensaios em que ela se prepara. Sem obviamente entregar a trama, destaco o talento do cinema europeu no que diz respeito às cenas de mortes violentas, mais uma vez se sobrepondo aos californianos. A morte violenta não é um balé a ser coreografado. Não tem que ser bela e sim coerente com a história e pano de fundo na qual são contadas. E nisso também o cinema francês se sobrepõe ao americano. Vide outra cena de morte, no filme Caché: surpreendente, chocante, verdadeira. Mas Jacques Audiard não quer chocar com o seu Profeta. Antes, prefere a discussão que o seu múltiplo personagem central nos oferece. Por isso assistí-lo mais de uma vez, para talvez decifrá-lo. Talvez, o que pode na realidade, jamais acontecer.

confirmando paraty

"Vem dos caminhos do mar
Vem navegando cansado
Meu barco azul enfeitado
De bandeirinhas e luz
Só pra que, só porque
O carnaval na rua vai chegar
E o nosso bloco abre alas pra passar
Agora é vida, agora é sonho
O carnaval esta na rua
O passado pouco interessa
Abre a janela, vem ver a lua
Vem ver estrelas e a madrugada
A aurora é linda em Paraty
Agora é vida, tristezas não
Tira a saudade do coração�"

Zé Kleber

voar ou morrer

Quero te tirar daquele cercado de roça, daquele refúgio de amor que te quiseram manter. Nada mais é do que o quarto trancado do pássaro menino que não pode voar. Quero abrir o portão de madeira velho e afagar o cão que vais deixar à sua espera, órfão do seu carinho de prisioneiro. Mas corre, atravessa os limites da prisão da qual eu vim te libertar. Quero que entendas, antes de escapar, que não é a vã liberdade que te ofereço, mas o escape da prisão de amor que o fizeram condenar. Agora olha para trás uma última vez. Vê o velho portão. Vê o velho cão. Vê o pai e a mãe, que te fizeram infeliz por tanto te amarem. O medo que terás agora só não é maior que o medo que te mantinha aprisionado. Quero que ganhes o mundo, como o filhote que se atira no espaço sem muitas escolhas. É voar ou morrer. Quero que ganhes a vida por tuas próprias asas. Quero que voe livre sem lembrar do que ficou para trás. Mas espero que lembres, que também se sofre e se pena nas mãos daqueles que nos dizem amar.

mini drama IV

No quarto:
– Me corta com este bisturi.
– Não tenho coragem.
– Corta!
– Você é louco.
– Corta, você já foi tão mais fundo que isso.

mini drama III

– Tô sem grana...
– Procure emoções baratas.

mini drama II

A vida é uma boate e eu não conheço o DJ.

mini drama I

Chorar de alegria é que lava a alma de verdade. Mas tem faltado sabão há algum tempo.

morta

Aquela carne fedia muito. Forte. Presente. Ele ainda a abraçava, acarinhava-lhe os cabelos secos. Cabelos de cadáver. Estava morta. Ele sabia. Ela não o via mais. Mas ele não se apartava daquela decomposição. Forte. Fedia. De nada adiantavam suas lágrimas caindo sobre aquela pele seca aberta em feridas podres. Estava morta. Ele sabia. Sorria às vezes, olhando com carinho aqueles olhos fechados. Sorria. Ela não ouvia mais. Estava morta. Ele sabia. Apertava ainda com mais força aquela carne gelada entre seus braços. Apertava. Chorava. Sorria. Tinha tanto calor e ela não sentia mais. Estava morta. Deitou ao seu lado, encolhido, fetal, calado. Olhava o seu rosto, ainda apaixonado. Não precisava falar. Não a via mais. Estava morta. Não estava mais ali. Mas ele não sabia.

reveillon em sta tereza

Segura agora a sua taça vazia
que o reveillon já passou
você não viu
você dançou
não, ele não te tirou
você não viu?
você não vê nada
lambe agora sua tacinha vazia
sem aquele gosto que tu gosta
sem aquele nojo que ele dava
mas mesmo assim você gozava
lambe agora a sua calcinha molhada
jogue longe a taça
espatifando nas pedras de Santa Tereza
vai pra onde?
volta a pé pra casa
a estas horas ainda não tem bonde.

obrigado

Vim agradecer o soco. Na boca do estômago, como sempre acreditamos ser mais válido. Mais autêntico. Nada daquelas desculpinhas apressadas, sem muito fundamento ou lógica. Não é tão mais sincero o golpe certeiro, de forma que não fiquem dúvidas? Dói, mas é rápido, e a bem da verdade, inesquecível. Venho então a público para isso, agradecer o golpe, ainda que ele tenha me custado alguns analgésicos e noites insones em que não encontrava uma posição adequada para relaxar e dormir. Pois doía em todos os lados que tentasse. Doía em todas as posições em que não te encontrava ali, do lado. Mas doía de uma forma boa, veja só. Doía de uma forma definitiva, quase poética. Como um fim de tarde em Paraty. Como um almoço de toalhas brancas sobre amendoeiras. Como um violento ato sexual às 10 da manhã de um sábado preguiçoso depois da yoga. Doía em todos os lados. Principalmente o de dentro. Mas doía de uma forma boa, porque explicativa. E embora fosse dificil aceitar isto naquelas noites em claro, era certo que no dia seguinte talvez ficasse mais fácil de se conviver. Com ela, a dor. Que estava em todos os lados, de dentro, de fora, acima, abaixo. O soco então era aquela espécie de bezetacil dolorida que ninguém quer tomar na bunda, porque, dizem, é onde há mais carne. Nem sempre, tanta bundinha magra por aí. Mas é o estabelecido pelas leis medicinais, vamos colocar assim. Então, depois da agulhada ou mesmo o baque seco do soco no estômago, têm-se aquela sensação quase boa da esperança de que depois daqueles segundos dolorosos, virá enfim, o alívio. Melhor assim. Que adiantam longos meses ou mesmo anos de afagos e carinhos mentirosos ou mesquinhos? Vive-se aquela mentira agradável, confortável. Mas, como um pé descalço sobre o gêlo, nervos e ligamentos tentam desesperadamente avisar ao seu cérebro que, opa, se liga, tem alguma coisa errada e você não vai conseguir pisar neste terreno por muito tempo. Então, se por algum motivo você não consegue se mover e tirar o pé, ou mesmo recusar os afagos, que embora mentirosos, são tão agradáveis, então, acredite, é bem melhor o soco. Certeiro, na sua alta estima anã. Peace.

o louco encantado

Que podia ser agora
ser antes e ser sempre
mais divino que me acordar chorando
mais mortal que me acordar sorrindo
mais clichê que me esperar na chuva

se me encanto não aprendo
nem ganho se venço a luta
espero com a garganta presa
que explodirá agora
antes, sempre.
Louco.

Aí pelas Três da Tarde

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

Raduan Nassar, do livro "Menina a caminho", 1994 - Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas.

manutenção

Era de se esperar que o café saisse preto. Que a goiabada desse formiga. Que o farelo espalhasse do pão e o elevador entrasse em manutenção. Antes mesmo que eu tentasse uma breve faxina, o amor subiria de escada. Pois ele não come goiabada, nem espera na esquina.

AGORA TEM MAIS UM... VAI LÁ.

Risinhos Nervosos

terra

Cheirou as mãos. Sentiu o perfume e andou. Caminhar naquele terreno era ter aos pés a calma dos mortos, a textura dos vivos. Pisando-o, sentia o tato dos dedos que baixavam um a um, feito um dedilhar pianista naquela terra fertil e rica, pois intocada. Intocada, não virgem. Cabia ao caminhante descobrí-la por entre relvas, deslizes e durezas de carne. Um sobrevôo de planícies de pele, de montes vulcânicos e um pouso de pioneiro. Terra doce sem erosão ou solavancos. Espécie rasteira que permite deitá-la e sonhar acordado, olhando as estrelas dentro dos seus olhos. Ilha de todos os meridianos e loucos navegantes, que deixa fincar no seu rincão a bandeira do servo humilde e pedinte, que mata a sede na sua generosa maresia.

Dá o sinal

Não que fosse tão tarde. Mas aquele horário em que a maioria das pessoas já chegou em casa. Não que fizesse muito frio. Mas era uma noite silenciosa, com uma lua apenas razoável. E aquela rua não era exatamente perigosa, mas já estava deserta na hora em que ela chegou devagar ao ponto de ônibus e sentou, suspirando fundo. Era uma noite comun. Sem happy-hours, sem comemorações ou jantares especiais. Era uma rua praticamente deserta, onde ela costumava esperar o ônibus, todos os dias, na volta para casa.

Limpou com a bolsa o assento de metal, iluminado por uma publicidade de xampu e abraçou o próprio corpo. Gostava disso, lhe dava um certo aconchego. Constatou no pequeno relógio de pulso que talvez já tivesse perdido o ônibus que passava naquele horário. O que a fez pensar no tempo em que ainda deveria esperar e no pouco que lhe restaria de descanso, uma vez em casa. A dez anos atrás ela não se preocuparia tanto com este tempo. Mas era mais jovem. Não que fosse velha agora. Mas era um tempo em que ela ainda esperava que se cumprissem as promessas que ela mesma se fazia.

Ele chegou em completo silêncio. Só se fazendo notar quando já sentava, dois assentos distantes do dela. Ela não olhou, mas o cheiro forte de cachaça chegou até ela. Virou-se quase de costas para ele, atenta ao início da rua. Foi quando um ônibus dobrou a esquina. Indo até a beira da calçada, ela percebeu não ser aquele o seu ônibus. Voltou ao banco num suspiro longo. Só então ela o viu. Não era um mendigo, como talvez houvesse pensado. Tampouco parecia um bêbado, desses que ela costumava ver pelas calçadas, quando saia tarde do escritório. Mas notadamente, ele estava bêbado. Ele lhe pareceu mais um peixe fora d’água, que não deveria estar ali, naquela hora, naquele estado. Com aquelas roupas dois números maiores que o seu. Um solitário, constatou. Ele vestia-se como um homem solitário. Ele cheirava como homem solitário.

– Não era o seu… Ele ensaiou continuar.
– Não.
– Mas era o meu. Não tive forças pra levantar – ele ensaiou um sorriso.

Alguma coisa naquele quase sorriso e entonação de voz, fêz com que ela efetivamente olhasse para ele. Tinha a testa suarenta, os olhos injetados pelo álcool, mas conseguia olhá-la firmemente. Uma calvície precoce o fazia parecer mais velho do que talvez realmente fosse. Ele parecia antes, sofrido, desgastado. O fato é que alguma coisa, talvez piedade, talvez afinidade, a tenha feito falar.

– Eu poderia ter feito o sinal pro senhor.
– Não me importo.
– Eu sim, estou bem cansada.
– Também estou…
– Já é tarde e daqui a pouco vou estar de volta, neste mesmo lugar.
Ele apenas balançou a cabeça.
– O senhor trabalha por aqui?
– Minha filha. Naquele prédio, ali. – apontou pra esquina.
– É onde trabalho. Talvez até conheça sua filha.
– É secretária. Uma firma boa...
– Também sou secretária. Minha firma não é tão boa, mas tô tentando arranjar alguma coisa pro meu filho mais velho.
– Ela não me recebeu. Mandou que esperasse. Esperei. Faz muito tempo que não vejo minha filha. Depois veio um segurança e disse que todo mundo do escritório já tinha ido embora. Ela deve ter ficado com vergonha. Eu entendo. Faz muito tempo que não vejo minha filha.
– Meu filho morou um tempo com o pai. Mas pouco tempo. Os filhos geralmente preferem as mães. O senhor não acha?
– A mãe dela morreu. O caso é que ela não prefere a mim, mesmo.

Ele olha pro início da rua. Um ônibus vira a esquina, buzinando pra um mendigo que atravessava na sua frente.

– É o meu! – ela diz, animada.
– Que sorte... dá o sinal!

Ela chega até a beira da calçada. Mas alguma coisa, naquele quase sorriso e entonação de voz, a faz voltar.

– Eu espero o outro.

california dreaming

O amor era um filtro de barro que ela tinha sobre a pia. Sob ele o paninho branco que a mãe fizera.

Ele a fotografou um dia, olhando a luz branca que vinha da janela da cozinha. O filtro de barro no fundo. E ela desfocada.

Foi um flash rápido, o tempo só de criar o moleque. Que não ia fazer faculdade, graças a um tio. O mandaria à California, pois queria ser skatista.

O filtro de barro quebrou no dia em que o menino voltou, pra lhe mostrar o neto. Era loirinho, tinha olhos azuis e a chamou, grandma.

que bobagem...

faz tanto tempo que confesso / que tanto tempo te peço / pecando pelo excesso / fazendo jus a um processo / e você me queima com este nespresso?!

ouvi ontem

"Tudo ressoa, mal se rompe o equilíbrio das coisas. As árvores e as ervas são silenciosas: se o vento as agita, elas ressoam. A água está silenciosa: o ar a move, e ela ressoa. As ondas mugem: é que algo as oprime. A cascata se precipita: é porque falta-lhe solo. O lago ferve: algo o aquece. Os metais e as pedras são mudos, mas ressoam se algo os golpeia. Assim também o homem. Se fala, é porque não pode conter-se. Se se emociona, canta. Se sofre, lamenta-se. Tudo o que sai de sua boca em forma de som se deve a um rompimento do seu equilíbrio... A palavra é o mais perfeito dos sons humanos; a literatura, por sua vez, é a mais perfeita forma de palavra. E assim, quando o equilíbrio se rompe, o céu escolhe entre os homens os que são mais sensíveis e os faz ressoarem"

– Han Yu, poeta chinês do século VIII.

operário

Quem se pendura em andaimes não sobe na vida.

oficina

Fui inventar de fazer uma oficina de literatura. Resultado: CRISE!!! :((

atenção senhores passageiros

Informamos que já estão nas suas asas o combustível necessário. Em caso de pressurização, não use nenhuma máscara. Use suas asas.

insustentabilidade

Ei, eco-chato, preserve o planeta mas me poupe.

Horácio

“È hora de beber, / De tanger a terra/ com o pé liberto”.

você nasce agora

Somos tão bestas quanto o curador da vernissage
Somos tão tristes quanto as Patrícias da buatchi
Queremos tão pouco e exigimos tanto de todos
Queremos tanto e exigimos tão pouco de nós mesmos

Quando virarmos a esquina, veremos nossa mãe morta no meio da rua
Quando andamos mortos pela rua, nossa mãe ora por nós antes de dormir.

não esqueça a minha, caloi.

"Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive".
Vinícius de Moraes

– Para quem já me "salvou a vida" duas vezes, meu amigo Marcelo Caloi.

maps

ouvi

– Por que você não põe parágrafos nos seus textos?

tem razão, por que? agora tem.

– Queria tanto que você ficasse. Você fica? Promete?

prometo.

– Verdade que você consegue deletar pessoas?

Não consigo esquecer. Mas consigo ignorá-las a existência. Se é cruel? Talvez. Mas deixaram marcas não menos.

– E agora, o que você vai fazer?

Continuar vivendo, há outra possibilidade?

(ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.) Hilda Hilst

obrigado, ferreira.

"Converter a vocação em expressão demanda um esforço imenso. Tudo vai depender do equilíbrio entre o acaso e a necessidade. A vocação é acaso. A expressão é necessidade. Compreende a diferença? No fundo, a vida não passa de uma constante tensão entre acaso e necessidade.”
– Ferreira Gullar, tirado daqui.

Rachando o bico

Now you say you’re lonely e todas essas bobagens que cantam os paulistanos notívagos artísticos. Vou te falar que este papo é muito relativo. Tão relativo quanto esta noite na calçada, depois de tanto tempo sem pôr os pés pra fora. Eu tô só fantasiando, esta noite ainda não aconteceu. Ainda tô em casa, no meu exílio forçado. Gosto de pensar assim, como um Neruda enclausurado, dando um del em quase tudo que brota. Desde idéias até brilhantismos suores. Ah, brilhantismos… de onde você tirou isso agora? Mas as idéias pulu (lam). Das mais ordinárias às mais ordinarias ainda, se é que é possível.

Dizem que é assim mesmo, você compra um livro com muitas páginas, mais de 500, de preferência. Aquela tal bíblia do tal cara fudidão, que te indicaram. Aí você lê e se sente um merda/catedrático/lunático/pseudo/docaralho. Uau, agora sim. Mas o processo segue, claro, diferentemente pra cada um. É uma rinha de galo (e de galinhas), este lugar onde você treina, não percebeu ainda? Sorte sua que são galinhos magros e depenados. Imagina se te jogassem numa daquelas arenas de pit bulls musculosos e bem alimentados com ração de prima? Aí sim você estaria fudido. E mal pago, porque só quem é bem pago neste país são os ETS, NBAs e TRIPLO As da vida, fiquei sabendo estes dias. Eu tenho um amigo que tá na escalada em busca de se tornar um Triplo A, mas ele ainda não comprou aquele triplex na Vila… não vou lembrar agora, mas ele tá tentando. E diz que um Triplo A não pode, além de muitas outras coisas mais, se apaixonar por qualquer pessoa, não. Primeiro me mostra o diploma, depois eu te mostro os peitos, senão nada feito. Tá pensando o quê?

Aí como bom galinho magro e depenado, você se esforça pra tirar algum leite que seja, das pedras que colocaram em seu caminho, nem que pra isso tenha que rachar o bico. Fique bem claro que rachar o bico aqui não tem a conotação que os paulistanos notívagos ou não, têm. Rachar o bico tentanto tirar o leite, compreendeu? Mas não desiste não, o que importa é tentar. Se você não é ator de Hollywood e não precisa trabalhar, deve entender o que estou dizendo. Ah, esqueci os Triplo As. Mas eles também trabalham, pelo menos até se tornarem verdadeiramente um Triplo A… tá, parei. E o Neruda hein? Faz-me rir. Eu não ganho grana com o que escrevo. Eu não tenho prestígio com o que escrevo, e aí me perguntam, pra quê essa merda? Não sei também, tô tentando descobrir. Mas tá bom o negócio, acho até que este processo é mais bacana do que o de me tornar um Triplo… ops. Enfim, o processo tá bacana, acho que é assim mesmo que rola.

Me agrada a idéia do Neruda, por mais distante que esteja. Óbvio, você entende que é uma figura de linguagem, né? Me agrada da idéia do exílio, me agrada a idéia de uma noite em claro numa terça-feira qualquer, me agradam tantas outra idéias. Só me advertiram pra não mergulhar no crack, isso não. Até porque o galinho não ia aguentar mesmo o cachimbinho. Now you say you’re lonely? Bem vindo a clube, cara. Nada como um paulistano notívago (os melhores), pra te ensinar a lutar sem perder muitas penas. E nem rachar muito o bico.

violoncelo


02 minutos a tempo de ver o moleton cinza aberto, jogado com pressa. Nem tanto frio assim, mas quem poderia dizer. Ficaria mesmo quase tranquilo só para ouvir suave o violoncelo, enquanto volátil, uma voz sairia não para dizer, mas para encantar. Menos de 01 minuto para estragar tudo querendo tocar e reter algo que não era pra isso. Mas a tempo percebi e meti as mãos nos bolsos fundos do jeans furado, desistindo de tudo. Mas não de ouvir o doce violoncelo. Mas não de ver o moleton cinza fechado. O inverno chegava.

Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.

– Caio F.

esquizofrenia e coca-cola

Quando enfim sentirmos o cansaço supremo, então daremos conta do longe que sempre esteve tão perto quanto as possibilidades que a vontade nos permitia. Porque durante a vida nos acostumamos a fazer estes faz-de-conta, mesmo sabendo que no fundo não sabemos mesmo onde pode dar. Vemos os quilômetros da distância perderem facilmente para a distância das vontades. Quando enfim nos cansarmos de nos bastar, pode ser tarde. À espera de estarmos prontos, somos capazes de morrer mil vezes durante anos a fio, sem nunca ficarmos prontos. Nunca estaremos prontos. E o cansaço virá, indubitavelmente. E depois dele, quem poderá saber. Disse uma vez, sem tirar os olhos da tela, que era sua, amarela, o quanto tinha pra dizer, mas perdia-me diante da sua completa perdição, que eu confundia com magnificência. Talvez você tenha percebido meu engano e sorriu, amarelo, dizendo que o tempo se encarregaria de dizer tudo. Que me importava o tempo? Que me ajudaria o tempo? Queria eu mesmo naquele momento conseguir verbalizar toda a dolorosa felicidade que me explodia pela garganta. Queria vomitar tudo aquilo, só assim conseguiria uma plenitude tão grande como a sua me parecia. Não disse nada, embora tivesse todo o tempo para dizer. Não era capaz de dar conta daquela felicidade. Não saberia viver com ela, embora sem ela não conseguisse respirar direito para subir os degraus que levavam até aquela vila de casas, de plantas nas portas. Traz Coca-Cola, se vier. Não poderia, reconheço hoje. Há lá fora uma felicidade que não é minha. Havia naquela vila de casas uma felicidade que não poderíamos.

some of the most interesting people I know, don't know what to do with their lives.

– Do blog do Delson.

wild




o cortiço

Do meu coração, terreno baldio e alagado,
fiz um cortiço de quartos,
de paredes sujas e teto rachado

Embora baldio o terreno, era fertil a sua terra
e algumas flores nasciam,
sem que ninguém as plantasse

A seus inquilinos, todos devedores,
tinha por hábito perdoar,
eram todos vagabundos e perdidos,
assim como eu

Os quartos não eram seguros
e por vezes ruíam, sufocando
quem estivesse lá dentro

De minha parte, como mau administrador,
não sabia prever,
só sabia abrigar

Enquanto as flores cresciam
e os quartos ruíam,
o terreno virava uma espécie de entulho,
de túmulos não planejados

Tive por fim uma ordem de despejo,
trouxeram máquinas, analistas,
que me obrigaram a tudo limpar,
e a todos os inquilinos expulsar,

Mas eram todos devedores,
e assim como eu, sem ter para onde ir,
ficaram todos no mesmo terreno baldio,
onde não havia mais quartos,
mais nada

Mas a terra era fertil,
e lá no fundo, num canto de cerca qualquer,
alguma flor ainda insistia.

Mafalda

Paraty / London

Poderia fingir que fui à Londres, fiquei uns dias e voltei com livros, CD’s, posters. Poderia fingir, mas não vou. Me recuso a ignorar a tão doce e tão mais próxima Paraty. De onde não trarei livros, tampouco posters com dizeres de Virgínia Wolf. Trago no máximo algumas lembranças de janelas azuis sobre penhascos cobertos de folhagens, à beira do estouro das ondas lá embaixo. É perigoso, eu sei, mas creio que isso não é o suficiente para mim, ou para me inibir diante da força das ondas nas pedras. Posso escorregar para um tchibum fatal, eu sei, mas isso nunca me impediu. Deveria, reconheço, mas nunca me impediu. Como um tio ao contrário, ainda me arrisco, ainda me submeto à espera do sobrinho mais coerente que virá me puxar as orelhas. Ah, essa juventude tão acadêmica e tão segura em seus perfis virtuais. Talvez não conheçam a dor de um bom escorregão sobre as pedras. As luxações e fraturas que um tombo bem tomado pode causar. E elas ficam, acreditem. Elas sempre permanecem, embora nem sempre elas te inibam. E você cai mais vezes. Cair e levantar, sem beber, de preferência. Porque é preciso estar lúcido para administrar e absorver todas as experiências. Mesmo as dolorosas. Já disseram por aí que existe algum prazer na dor, vai saber. Vai descobrir por si próprio, depois você me conta. Mas eu falava de janelas azuis e estas têm muita força em minhas lembranças nem tão doloridas assim. Janelas azuis só perdem para portões vermelhos. Estes sim carregados de drama, paixões e tragédias, típicas de um bom dramalhão mexicano, ou mesmo carioca. Mas são as janelas azuis que me calam mais, me hipnotizam mais. São por elas que as folhagens lá de fora querem entrar. De baixo e tão perto vem o ruído do mar, de dentro e tão doce pode ser o testemunho do seu despertar. Como se emuldurassem para mim este momento entre as janelas azuis. Como único visitante desta privilegiada galeria, por onde entraria, vencendo pedras, limos, folhas, ondas e penhascos. Lá fora, após as janelas, ainda tem o sol, como quem já vai embora, com inveja de mim.

Sonhei

Ainda bem que ainda tenho você por perto
Que ainda vejo sua respiração embaçando a janela
Que ainda sinto a sua respiração bem perto
A sua voz bem dentro
E o seu pensamento bem nítido na minha cabeça

Ainda bem que o que ficou de ontem foi o sonho
Tão nítido e tão claro como estas mãos agora no teclado
Se sonhar, algumas vezes, é projetar, desejar, então durmo tranquilo
Não só a sua voz ouço clara dentro de mim
Seu pensamento se mistura ao meu e eles se embaralham na minha cabeça

Recostado na janela, ouvi um violão que vinha de cima
Sonhando acordado, como se você o tocasse, não dormi
Mas sonhei
Sonhei que era você que tocava, tão nítido e tão claro na beira da minha cama
Tão clara como a sua voz que ainda ouço dentro de mim.

Sereno

A viúva que sai de madrugada no quintal de gramas molhadas. Sereno que já caiu desde cedo. Tornando molhada sua noite. Escura. Fria e em silêncio. Pisa os pés quentes no banhado de orvalho e mete as unhas sobre a camisola fina atingindo a pele branca. Vermelha e molhada de tanto suor, de tanto suor maior que todo sereno ou oceano deste mundo feliz. Que agora ela não reconhece mais. Agora que ela já não morre mais.

Tem gente que me questiona

e quer uma definição sobre os meus textos, no sentido do que é meu (sobre mim mesmo) e o que é apenas sobre os outros, as coisas, a vida. É claro que eu tenho esta resposta, mas ela também às vezes parece confusa até pra mim mesmo. Tentando então quebrar um pouco deste “mistério”, já adianto que isto aqui é sobre mim mesmo. E é bem pessoal, o que, diga-se de passagem, nem é o intento deste blog (ops, será uma pista?). O fato é que escrevo neste domingo, ainda tonto de ressaca, não alcoólica, mas de uma gripe que me passou uma rasteira na sexta-feira e me tirou de combate (e de casa), um fim de semana inteiro. Digo de casa, pois fui me abrigar na casa de um amigo até passar esta influenzae brava que me derrubou. Caríssimo Marcelo, obrigado por tudo, irmão. Uma vez forçado a ficar parado, deitado, com os olhos fechados (embora nem sempre dormindo), você faz o quê? Pensa, né. É o que se pode fazer, pensar. E eu pensei muito. Curioso perceber que esta gripe me abateu justo na minha última semana de trabalho na agência em que estive por mais de 6 anos. Oficialmente, amanhã (segunda-feira) é o ultimo dia, mas a semana que passou foi a última. Amanhã será um fechar de conta, uma última carimbada, um último abraço e algumas lágrimas, eu sei, vão brotar. Fiquei a pensar embaixo do edredon, se esta gripe não estaría me ajudando a expurgar algo de muito ruim que estaria agora, finalmente, prestes a terminar. Pra quem ainda não sabe, nos últimos tempos, minha vida profissional naquele lugar, estava na verdade me deixando doente, física e mentalmente. Somado a vários outros fatores mais pessoais, a minha decisão em sair fora só me fez bem. Sabe aquela sensação de tirar um caminhão pipa das costas? Pois é. Mais curioso ainda é perceber o quanto somos livres nesta bentida vida, pra fazer-mos com ela o que bem entendermos. Mais assustador ainda é reconhecer que nós somos os responsáveis pela nossa felicidade, sim. Mais ninguém o é por nós. Hoje, às vésperas de começar uma semana inteiramente nova, e uma vida com páginas ainda em branco a serem preenchidas, tenho mais fortemente viva dentro de mim esta constatação. E isso me faz muito, mas muito feliz mesmo. Acredite.

E aí que o Chico Ribas voltou.

– Faltava ele!!

Chico

Entrevista

Nome -
Daqueles fortes

Estado civil -
Esquecido

Cor -
de sangue

Endereço -
Estrada em que se vai

Nome do pai -
Saudade

Preferências -
As ilícitas

Número que calça -
Pés na areia

Última vez em que chorou -
Hoje

A BEAUTIFUL LIE

Use, é lindo. Eu recomendo.

Dia 23

Era muito cedo na manhã cinza. Ou fim da madrugada que terminava triste. Talvez fossem as duas coisas. Por ser tão cedo e ser tão tarde era justificável ninguém por testemunha. Ninguém por perto para te salvar. Nem mesmo eu, dormindo, profundo e ilhado no outro lado da grande avenida, afogado nos meus próprios medos. Era o grande feriado que começava com festa. Que explodiria no domingo, na maior e pior de todas elas. Mas era também o fim de uma noite, mais uma em que depois de tantas, tantas outras, ainda te seduziam. Pois você ainda acreditava. Seu espírito velho e sábio se entregava sem razão ao som, às luzes, às vozes, às mãos de tantas outras, que só eram felizes por ter você por perto. Como um poderoso ímã a que ninguém (quase ninguém) conseguia resistir. Era assim desde muito tempo, eu sabia. Eu entendia, embora não concordasse. Concordar não é a palavra. Eu não invejava. Talvez porque no fundo soubesse que em verdade, em essência, você não estivesse ali por inteiro. Em meio ao som, as luzes, as mãos tontas de tanto amor para dar. Não, você era maior. Sua alma era maior. Sua aura era mais eterna do que todas aquelas luzes coloridas de mercúrio que um dia qualquer se partiriam em mil pedaços. Assim como você, naquela manhã cinza. Mas disso ainda não sabíamos. Houve um dia, uma noite, em que se comemorava o seu aniversário. Nesta noite única pude ver, ouvir, sentir o que só confirmaria o que no íntimo eu já sabia. A sua alma implacável, capaz de capturar para sempre outras tantas. Frágeis e jovens almas. Diferentes da sua, velha e sábia. Mas voltemos à manhã cinza, após a noite de festa triste, aquela última. Talvez você tenha entrado tímido e em silêncio naquele saguão. Talvez você tenha entrado cantando e sorrindo naquele saguão. As cameras registrariam, mas eu jamais veria tais imagens. Então o ruído musical do elevador quase chamaria sua atenção. Ele se repetiria, uma, duas, três vezes. Você volta ao saguão ainda tonto de tanta alegría, tristeza e esperança. Caminha até a piscina do hotel. Só, incrivelmente só. As câmeras registrariam. Onde estariam todos que te adoravam? Lá fora um velhinho passaria, agasalhado, no passeio matinal com o seu cão. Talvez você o tenha visto pelas vidraças. Olha então as cadeiras de madeira, pintadas de branco, na beira da piscina. Você poderia, se vencido pelo cansaço, deitar-se numa delas e dormir profundamente, em segurança, e ser acordo ao meio-dia, com o movimento habitual e caloroso do hotel lotado, em pleno feriadão. Talvez. Talvez. Talvez. Talvez. A palavra que nunca deixa de ecoar. A palavra que podería fazer com que tudo, num segundo, mudasse, e fizesse de nós um pouco mais, só um pouco mais felizes. Mas talvez, ainda no ímpeto da loucura da noite triste da grande festa, você tenha escolhido não as cadeiras. Você olhou para a água e sorriu aquele sorriso que seria capaz de fazer com que tudo, realmente tudo, acontecesse. Aquele sorriso. O último. E você escolhe a água. As câmeras registrariam. Sem sombra de dúvidas, sem dúvida alguma imagino que naquele momento você estivesse feliz demais. Feliz pra caralho, essa é a palavra. Ao diabo as cadeiras, ao diabo o sono, ao diabo a bala que te fez tão louco naquele momento, mas uma loucura diferente daquela loucura que te fazia viver e tornava viva a loucura dos outros. Todos os outros que te adoravam. Então, muito feliz você pula na piscina. As câmeras registrariam. O hotel ainda dormia. Ninguém por testemunha. Ninguém para te salvar. Nem mesmo eu, que dormia profundo e ilhado no outro lado da grande avenida, afogado nos meus próprios medos. Mas que se tornavam tão miseráveis diante do seu, ali na manhã cinza, naquela piscina deserta.

NY (ou qualquer outro lugar)

Legião Estrangeira

Me espera naquela manhã seca na esquina. Eu vou sujo da viagem, mas com aquela sede de quem abandonou a Legião Estrangeira e tá cansado de beduínos e areias. Você tá de bike mas eu me habituei aos camelos. Fazer o que, eles economizam água. E eu tenho sede. Admito que fugi do deserto. Prefiro o calor do cimento dos domingos sem fim. Prefiro aquela esperança, que é uma menina ainda, tão novinha. Vamos combinar assim. Te acompanho indo ao seu lado, enquanto você pedala. Trouxe comigo um cantil de lona, com a água que peguei num oásis.

2 anos

Ouvi ontem:

você já saltou do avião nêgo, agora é esperar que o pára-quedas abra! =/

Um pássaro ferido

Edouardo era magro, tinha franja e fizera foto-jornalismo em Berlim. Mas o que ele gostava mesmo era de uma boa fofoca. De volta a este brasilsãodemeudeus, Edouardo foi trabalhar numa revista megahype, naquela capital hype, claro, que era toda editada em P&B. Conteúdo básico: o que as pessoas fazem à noite, na rua, claro. O seu trabalho era acompanhar uma figura em sua jornada noturna e registrar isto para a revista. Mas Edourado não conseguia separar seu trabalho da jogação que deveria registrar, e se acabava na balada, junto com o seu "entrevistado". Foi depois de muita bronca da sua editora-chefe-loira-magra, que ele resolveu abandonar o jornalismo e cair de vez na noite. Virou então a hostess Fräulein Walquíria, num clubinho concreto, de som onírico. Mas manteve a franja até o fim. Da noite, claro.

Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem.

Hilda Hilst

CHUPA QUE É DE VODKA!!!

Nunca mais

Começava depois do fim da chuva, 3 da manhã. Deixava na rua uma névoa prata e um cheiro de vida nova. Com passos lentos como quem tenta capturar todas as partículas prateadas que caem uma a uma, na sua cabeça já molhada pelo sereno. Depois tinha a vontade de nunca mais voltar. Pra onde? Nunca mais ter para onde ir. Pra que? Ficar naquela rua, que nunca tinha fim, até o fim dos tempos. Até o fim da chuva, 3 da manhã.

SIM

É o medo que dá antes do salto. A coragem que brota no meio do ringue. O grito de felicidade no meio da praça. Pode-se se sentir feliz no meio de um furacão? Absolutamente sim.

Destino

O que será que acontece quando você encosta o destino contra a parede, aponta uma faca no seu pescoço e ameaça: muda, filho da puta?

As aparências enganam

Enviada a mensagem só pelo olhar, prefaciando o apocalipse que só você veria e só você entenderia. Basta. É o suficiente para que se faça entender. Já percebeu que mensagens codificadas atingem direto o destino, uma vez que só este está apto para entendê-las? Mesmo num emaranhado teleférico ou num emaranhado de teias e artérias do metrô envelhecido sob a cidade sodoma, prestes a ser engolida pelo oceano negro de lixo, crueldade e mesquinharia aparentemente sem cura. Eu disse, aparentemente. Basta. A cura está na mensagem, levante o seu cartaz. A intenção do envio se reflete na boa vontade do recebimento. Elas sempre atingem o alvo se enviadas com sinceridade, com verdade. A mesma verdade que vai distingui-los na multidão da cidade enlouquecida e aparentemente sem cura. Eu disse, aparentemente.

yes

A volta ao mundo do mendigo mineiro



Há dois anos fora do Brasil, o Mineiro retorna agora não sem antes fazer a mítica volta ao mundo que o inspirou a cair fora dos trópicos. Nem mineiro, nem mendigo, mas paulistano da Zona Norte, o cara é dos mais gente boa e inteligente que já topei por aí. Pra que tudo isto? Pra divulgar o blog em que ele está contando o que rola nesta jornada, que terminará na Africa do Sul, em plena Copa do Mundo. Belíssimas imagens e ainda por cima um bom texto, contando um pouco sobre cada lugar por onde passa. Confira aqui a viagem do mineiro. É isso aí, brother! A barraca de churros tá de pé...

O que não mata, engorda.

O que não fascina, mata. Aos poucos.

smallbigcity

Sim, eu queria viver numa pequena cidade grande. Provavelmente fora do circuito "sudeste maravilha". Já tão saturado de quase tudo. Talvez aquelas provincianas, avenidas largas, baladas à 15 reais e cerveja à 4. Ainda existem? Creio que sim. Gente que te olha na cara, que aperta a mão de verdade. E que sim, realmente está interessada naquilo que você está dizendo. E você percebe isto nos olhos delas. Acho que é isso. Alguma pequena grande cidade com alma. Grande.

Caía a tarde feito um viaduto

Enquanto te chamam e te convidam, você não dá uma trégua ao oráculo invisível que você diz existir sobre sua cabeça e dispara as sempre frequentes perguntas: Por que esse tempo todo? Por que esta merda toda? Ficou o trema em frequência ou caiu também? Você começa a se equilibrar em chás de melissa à noite, livros à noite, escritas à noite. Se toca você não atende. Se não toca você não entende. Você se esqueceu também da conta do telefone? Ah, não.

Hotel La Guardia


O neon verde do velho Hotel La Guardia estava quase todo encoberto pela neblina, comum naquela época do ano, aquela hora da madrugada. Visto assim, de longe, o letreiro do Hotel parecia um fogo verde tentando ganhar vida no topo do prédio do antigo Hotel. Ele subia a rua e olhou ainda mais uma vez, no alto, o fogo verde tentando ganhar vida, enquanto dava a última tragada no cigarro. Levantou a gola do casaco, enquanto seus olhos se enchiam de água. O vento, talvez. Continuou subindo, vencendo o vento. Passou em frente a um boteco, o único aberto aquela hora, naquela rua deserta. Ouviu a risada de um velho no balcão e o som de um rádio mal sintonizado. Ainda pôde ouvir o final de uma notícia, que dava conta de uma sepultura violada, no cemitério da cidade. Loucuras de um mundo perdido. Veio um calor lá de dentro que quase o fêz parar. E o velho no balcão parava de rir. Mas ele sequer olhou pro lado. Seguiu, subindo a rua, quase vencido pelo vento. Enxugou os olhos e parou em frente à entrada do Hotel, com sua porta de madeira envelhecida, pintada num improvável verde musgo. Olhou para cima, mas o neom verde não era visível daquele ângulo. Mas pôde ver o topo do prédio, agora totalmente encoberto pela densa névoa que parecia querer engolir o prédio inteiro. Uma corrente gelada de ar correu pela calçada, passando por ele. Olhou o relógio. Chegara na hora marcada. Acendeu outro cigarro e esperou, impaciente, tirando o chapéu. Em poucos segundos a velha porta verde musgo se abriu, devagar. Uma figura miúda, negra, como um gordo besouro, começou a descer os minúsculos quatro degraus até a calçada. O rapaz jogou longe o cigarro e apertou nervosamente o chapéu entre as mãos, enquanto o besouro se aproximava. Ele pôde sentir um cheiro de mofo quando a pequena figura parou à sua frente.
– Pontual. O besouro elogiou.
A voz nasalada e calma do minúsculo homem fêz um pânico repentino percorrer o corpo do rapaz, já quase congelado.
– A noite está muito fria, eu sei. Por isso, vamos ser breves.
– Tudo saiu de acordo?
– Absolutamente. Parece que o silêncio que pesou sobre a cidade no dia de ontem, deixou todos congelados, paralisados. O senhor percebeu que quase ninguém saiu de casa esta noite?
– Não.
– Natural, o senhor está muito abalado. Mas não se preocupe. Fiz tudo conforme o seu pedido. E aqui estamos nós.
O rapaz procurava algo nos bolsos do casaco preto, enquanto o besouro abria um sorriso medonho esticando o fino bigode, dando-lhe um aspecto de quase demônio.
– O seu pagamento, conforme o combinado.
O pequeno homem apanhou nas pequenas mãos o envelope robusto e deixou escapar um leve arrôto de puro contentamento. Os pequenos olhos pretos brilharam e ele finalmente olhou nos olhos do assustado rapaz.
– Eu conheço a sua família desde muito antes do senhor nascer. O senhor sabe. Eu sei que não sou bem quisto pelo povo daqui, essa gente mesquinha que tem medo da própria sombra. Mas, talvez por isso mesmo o senhor tenha me procurado.
Apesar do vento frio, o rapaz começava a suar e a olhar em volta, aflito por encontrar alguma testemunha daquele encontro. Mas o besouro tinha razão. Não havia ninguém pelas ruas. A cidade estava morta.
– Esta quantia é o suficiente para que você vá pra bem longe daqui, como é do seu desejo.
– Eu sou muito grato ao senhor. Cumpri a minha tarefa, mas com profundo pesar, o senhor esteja certo disso. Diz o besouro, entregando-lhe uma chave de um quarto do La Guardia.
– Sou eu que devo lhe agradecer...
O rapaz fecha enfim o casaco preto e colocando o chapéu, sobe os quatro pequenos degraus em direção ao interior do Hotel. Quando o besouro lhe adverte, ainda com a voz muito calma, mas firme.
– Não se preocupe com o porteiro desta noite. Ele está nos fundos do Hotel e se acordar, só será em dia alto, amanhã!
O rapaz não respondeu. Com um leve aceno de cabeça, concordou e prosseguiu, abrindo a porta verde-musgo.
– Outra coisa! Uma última coisa, doutor.
– O que é desta vez?
– Eu sei que já conversamos sobre isso e o senhor sabe que o meu dever é cumprir aquilo que combinamos. E eu o fiz. Com um grande pesar, mas o fiz. Mas o senhor perdoe minha insistência. Eu me preocupo com o que pode acontecer. Se esta gente sabe que o ajudei...
– Isso não vai acontecer. Pelo que vejo você desempenhou muito bem o seu papel. Desapareça daqui e não volte nunca mais. Quando notarem a sua ausência, já será tarde demais.
– Mas doutor, o que o senhor pretende fazer?
– Eu havia proibido perguntas, esqueceu? A sua parte foi cumprida. E a minha também. Adeus!
Entrou rápido no Hotel, antes que o besouro o impedisse mais uma vez. Passou pela pequena e deserta recepção ao lado das escadas, ganhando silenciosamente o estreito corredor do Hotel. Abriu a porta do quarto e um cheiro de terra molhada invadiu suas narinas, enquanto ele acendia o pequeno abajur ao lado da cama. E ele finalmente a viu, linda, sobre a cama. Sentou ao seu lado, afagou seus cabelos e uma onda incontrolável de lágrimas brotaram dos seus olhos enquanto ele desabava sobre o corpo imóvel daquela mulher. Cego, louco, alucinado, lembrou, numa fração de segundos, tudo que o levara até ali. Eles se casariam no dia anterior. Mas ela, acometida por um mau súbito, morrera enquanto dormia, um dia antes da data marcada. Diante das famílias paralizadas, ele acompanhou, sem muita reação, todos os procedimentos que se seguiram. Apenas na volta do enterro, sozinho em seu quarto, diante da sua roupa de noivo ainda sobre a cama, é que ele se entregou por completo ao delírio e a loucura que a dor lhe oferecia. Planejou tudo em silêncio, sozinho, perdido em sua dor. Não chorava mais. Pensava nela. Estaria novamente com ela. Os dois juntos. Como sempre sonharam. Contratou furtivamente o besouro, e este lhe devolve a noiva recém-sepultada, de acordo com as suas ordens de viúvo e insano. Ali, mais uma vez do seu lado, finalmente ele sorriu, depois de tanto chorar. Não tinha mais forças. Queria apenas dormir, para sempre, em silêncio, abraçado a ela.

– Este é um repost (original de 2008), atendendo a pedidos.

U tópicos

• Não, ela não é do tipo de garota que se veste de tons pastéis. Até ai tudo bem, há tantas rockers de boutiques nos circuitos das artes. Mas não é só o vestido preto dela que se sobressai. Tem aqueles olhos mortos de quem quer te comer vivo. E ela ainda palita os dentes.


• E se ele, embora tímido, foi mandado pelos pais a estudar filosofia em Paris. Seria muita sorte que não se tornasse viado. E fosse sim, o tipo preferido de presa a cair nos dentes dela. Mas ele tinha um segredo, guardado nas duas mangas do Armani. Treinara com umas feras, num circo em Moscou.

• Talvez eles se encontrassem um dia, na Praça da Sé.

Pra quê

Pra quê dizer que te adoro? Te adoro. Te adoro, porra. Pra quê? Pra que você enfim saiba? Que te adoro? Que te esperaria em qualquer lugar. Esquina. Calçada. Último andar do arranha-céu mais alto. Pra quê? Pra que se sentisse a última coisa mais que todas querida. Desejada. Apunhalada. Pra quê? O esfaqueado sou eu. Dizer que te vejo na rua, do outro lado. Me escondo. Só pra te ver de longe passar. Calor, roupas leves, cabelos, riso, conversas com alguém do lado. Que não vejo. Só você. Dizer que te encheria de flores, rosas, designs, aquilo tudo que eu sei que você gosta. Que te ouviria as maiores injúrias, insultos, calúnias, humilhações, como se ouvisse a maior e mais linda melodia do maior dos gênios da música. Para os meus ouvidos, somente. Que te alcancaria a nado, naquele transatlântico, daquele cruzeirinho ordinário, com toda aquela moçada sem graça, que eu sei que fizestes no verão passado. Que pularia no convés, completamente encharcado de todo tesão e loucura, que o simples sentir suave do seu perfume, embora desbotado à oito horas, provocaria. Em mim o efeito de tanta coisa boa e doida e pérfida e imensa e cheia de cor e vida. Dizer que te esperaria naquela padaria chique ou na barraquinha mais pobre do mais agreste do sertão da Paraíba. Lá você até iria, eu sei. Off-road, que tu gosta. Aventura, dirias. Mas não saberia me despedir. Não saberia te abraçar por adeus, até logo, qualquer dia, em qualquer calçada, que te visse passar. Do outro lado, conversando com alguém. Pra quê dizer que te adoro? Te adoro. Te adoro, porra.

O gibi

Era um menino desenhado. Traços coloridos que iam do pescoço à cintura. Como um gibi, que meninos e meninas gostassem de ler. Alegre por criação, tinha sempre um balão sobre sua cabeça, que dizia coisas boas. Coisas que faziam com que cada vez mais se gostasse dele. Pequeno, colorido, com grandes alargadores nas orelhas. Para que pudesse melhor ouvir todas as declarações que nasciam para ele.

aí eu dou um ffffound e acho isso:


e ouvindo Kasabian. vai dormir, vai.

Por enquanto é só, pe pe pe ssoal.

Assim mesmo, gagejando e tentando terminar. Calando e tentando explicar. Alguém já disse que é no escuro que aprendemos a brilhar. Me atrevo a completar, que é no silêncio que aprendemos a ser. Paciência.

Bring it back

Me traga de volta os domingos de paz. Os cachorros correndo amarelos, no parque. O café ao meio-dia. A livraria de madrugada. O jornal no sábado à noite. A mãe acordando baixinho. A sessão da tarde com banana amassada. O disparo do coração ao ouvir a voz. A corrida cega pra logo chegar. O grito mudo ao ver chegar. O almoço tarde, sem fome. O beijo de duas horas. Os dedos cansados. A pele molhada sem secar. A parede pintada de azul. A prateleira colocada de surpresa. O presente esperado na hora inesperada. Os pés descalços na areia. O banho de cachoeira no fim do dia. O banho de chuva depois da praia. A rede balançando na total escuridão.

Puerto Madero

Mais do que aquele luxuoso desejo de um pedalar tranquilo pelo Puerto Madero, faz-se agora uma necessidade louca de café. Acabou o pó em casa, e eu tomo mais café que um fumante inveterado.

Fato

Feliz Aniversário, velho.

Ele contava tantas histórias. Meio como aquele pai do filme Peixe Grande e suas Histórias. A maioria mentiras. Ou verdades fantasiadas, sei lá. Mas vejo assim hoje, que estou mais velho. E mais chato, coisa que ele nunca foi. Quando eu era moleque e achava que ele era chato (e jogava isso na sua cara), na verdade eu não entendia onde ele queria chegar. E era sempre em mim. Ele sempre quis chegar em mim, mas eu não deixava. Tinha minhas razões. Mas hoje, analisando com distância, penso que ele entendia. E talvez por isso mesmo tentasse chegar. Mas talvez não soubesse como. E talvez eu não quizesse mesmo. Não me arrependo. Pensava assim naquela época, era o que tinha de ser. Hoje, com certeza agiria diferente. Com toda certeza deixaria ele chegar. Ele dizia que nascera debaixo de uma mangueira gigantesca, secular. Passávamos sempre por ela, na beira da estrada. Gigante, antiga, uma sombra enorme. Talvez ele não tivesse realmente nascido debaixo de sua copa. Mas seus pais moravam perto, eram empregados da fazenda que abrigava (e ainda abriga) a tal mangueira. Não importa. Hoje vejo que o que importa era o que ele queria dizer com isso, com todas as histórias que me contava. Mentiras ou meia-verdades, não importa. Hoje sei que as histórias eram só para mim. Ele nunca me contou histórias pra dormir, mas sempre pra que eu acordasse. Hoje meu pai faria aniversário.

Quero!

Preso no elevador

Né? Não há por onde correr. Aí você tem que encarar. E tem espelho, o que é pior. Parou de repente, tuuuuumm... Deu uma piscada de luz, mas não apagou. Ainda bem. Já pensou? Preso e no escuro? Uma espécie de túmulo. Vivo, o que é pior. Preso, você e aquele cara ali no espelho, que você não quer encarar. Porque você vai ler na cara dele. Tá lá, pra quem quiser ver. Ou não. Vê-se mesmo assim. Preso. Trancado. E ainda assim exposto mais do que nunca. Mais do que sempre quis. Eu nunca quis, juro. Mas agora tá aí. Silêncio. Nem um pio lá fora. Trancado por dentro. Que foi? Tá olhando o quê? Ele não vai te responder. Ele tá trancado em outro lugar. Há um vidro entre vocês. Alguém chamou um técnico. Batidas. E de repente, tuuuuumm... voltou. Abriu a porta. Um ar fresco entrou, trazendo alívio. Suor, e uma última olhada. Ele continuava lá.

Mera coincidência

"Às vezes a vida fica insuportável. Em vez de cometer suicídio, eu entro num cinema. Tenho uma enorme paixão pelo cinema. Quando estou escrevendo sempre penso: onde está a câmera? Quem olha esta cena? Qual é o ângulo desta visão?"
Caio F.

Seattle ou Ceará

Esquece quem você queria ser. Pensa em algo diferente. Você, cabeça raspada, num dia de muito calor, em Seattle. Ou Ceará. Viria uma brisa correndo de qualquer lugar que pararia em você. Passando a mão na sua cabeça raspada. Os fios espetando a palma da sua mão. E você pensaria em tudo de novo que queria para si. A cabeça já raspada de todos os pensamentos inúteis. Só você. Parado numa esquina qualquer. A calçada. A brisa. E o sol brilhando na sua cabeça raspada.

Sem tempo pra nada

A barba cresceu e não tem comida em casa. (Um pré-post feliz)

Pablo


O QUE FIZ JÁ NÃO ME INTERESSA. SÓ PENSO NO QUE AINDA NÃO FIZ.

Pablo Picasso

Anatomy

Pensamentos, como cabelos, também acordam despenteados.

Caio F.

Humildade


Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura,
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

– Cora Coralina

vimtebuscarporra

Antipático como um gaúcho, não entrei no bar. Fiquei parado na porta, olhando as pessoas lá dentro. As pessoas lá dentro se resumiam a quatro. A gorda tosca atrás do balcão, dois sosias cabeludos do Diego Luna, só que feios, e ela, que sentada num dos banquinhos no balcão, olhava fixamente o copinho já vazio, ao lado do pedaço de limão chupado. Ela não gostava de tequila, só bebia por minha causa. Sabia que eu odiava. Sendo assim, não foi com espanto que percebi que ao me ver parado na porta, ela deixou cair no balcão a máscara de messalina triste, pra ensaiar um sorrisinho parco, como quem diz que tá adorando tudo aquilo. Mas tudo aquilo era um boteco escuro de quatro metros quadrados todo forrado de azulejos brancos encardidos e uma Junkie Box velha num canto que tocava uma Perla paraguaia num volume ensurdecedor, mesmo para um sábado à noite. E ela era uma arquiteta premiada, não podia estar adorando tudo aquilo. Eu sabia que não. E achei graça do seu sorrisinho simulado. Sem demonstrar, só ri por dentro. O Diego Luna que estava mais perto dela inclinou-se pra dizer alguma coisa, como se já o tivesse feito antes, segundos antes de eu chegar. Por cima dos ombros dele ela me olhou com aqueles olhos grandes, que eu sabia que serem de medo. Talvez tenha pensado que eu invadiria o bar e pularia com os dois pés no peito do pobre Diego, que não tinha nada a ver com os nossos problemas. Ele só estava no lugar errado, na hora errada, fazendo a coisa certa. Que eu tinha de admitir, qualquer homem faria. Mas pra surpresa dela, eu não fiz nada. Meti aquela cara que o Dunga faz quando lhe indagam o porque da derrota da seleção e caminhei até a Junkie Box. Correndo os dedos no vidro, fingi escolher uma música, fazendo um esforço pra não vomitar em cima da máquina. O outro Diego, mais perto de mim, girou no banquinho e disse alto: – Põe Justin, gato! – Eu não pude deixar de virar pra olhar na cara dele. Mais por surpresa que por desafio. Fiz um esforço pra não rir, e antes que eu esboçasse qualquer reação, ela subitamente deixou o outro Diego no balcão e veio na minha direção, com aquela cara de mãe prestes a dar um puxão de orelha no filho.
– Não tem Justin aí – ela me confidenciou.
– Como você sabe?
– Eu já procurei.
– Você gosta do Justin?
– Você deveria saber…
– Por que?
– Porque convivo com você a três anos e sei tudo sobre você? – perguntou de volta.
– Eu sou mais fácil de entender.
Ela colocou uma ficha na minha mão e voltou pro balcão. Ela sabia que eu ia odiar isso. E abriu o maior sorriso que podia caber naquele bar, não pra mim, mas pro Diego ao lado dela. Meti a ficha na máquina e apertei com força o primeiro botão que vi. Os primeiros acordes de Piripipi da Gretchen invadiram o bar, estrondando a Junkie Box. Ela olhou de novo sobre os ombros do Diego, mas desta vez sorrindo o sorriso genuíno que eu conhecia bem. E que ela só sorria quando realmente estava feliz ou achava graça, porque era difícil que ela achasse alguma coisa engraçada. O Diego perto dela olhou pra mim pela primeira vez e voltou os olhos pro balcão, parecendo entender o que estava acontecendo. Foi quando eu disse pela primeira vez:
– Eu vim te buscar.
Mas disse baixo e ela não ouviu, porque a Gretchen berrava no bar.
– Eu vim te buscar.
– Quê? – ela fez aquela cara.
– Eu vim te buscar, porra! – gritei no exato instante que a música acabou e ouviu-se um copo quebrando no chão, do outro lado do balcão.
– Merda – disse a gorda.
Foi quando ela levantou do banquinho, disse tchau pro Diego sem olhar pra ele e passou por mim em direção à porta, me estendendo a mão. Foi aí que eu percebi que tinha uma garoa fina caindo lá fora.

La commedia è finita

Não saia de casa sem ele

Não. Agora eu quis dizer algo como embaixo deste céu seria inevitável o encontro na calçada. Não que ele pudesse ser evitado. O céu.

Drops SP

Precisaria paciência de explorador da National Geografic para vagar pelas ruínas cheias de fósseis do Bexiga. Olhar de restaurador holandes para as paredes antigas do velho Belém. Um ímpeto de caçador aposentado para digerir a fauna decadente da Paulista nos sábados à tarde.

Viste boludo que El Secreto de Sus Ojos ganó el Oscar?


O roteiro de O Segredo, escrito pelo diretor Juan José Campanella e Eduardo Sacheri a partir do livro deste último gira em torno de Benjamín Esposito, um oficial de justiça aposentado que decide escrever um romance baseado em um caso ocorrido há 25 anos. O caso fora um estupro seguido de morte de uma jovem professora na Buenos Aires dos anos 70. Este espaço de tempo é o suficiente para que se tenha clara a idéia do que foi e do que se tornou a vida de Benjamín, apaixonado pela sua promotora Irene. Mais do que a direção de Campanella, o trabalho dos magníficos atores centrais Ricardo Darín, Soledad Villamil e Guillermo Francella, quero destacar o que realmente me impressionou. O roteiro. Numa ida e vinda no tempo montada de maneira tão fluida, pelo próprio diretor, que quase não se percebe a passagem de tempo, ou melhor, percebe-se mas com uma sutileza tão grande, que este tempo parece único. No meu entender, uma mensagem oculta, a de que para o protagonista, o tempo não passou. Claro que não cronologicamente falando, mas simbolicamente, uma vez que Benjamín teve sua vida “congelada”, tanto pelo crime (que conseguiu desvendar, porém sem punir), quanto pela paixão nutrida durante toda a vida pela sua superior. Talvez eu tenha cometido “o erro” de assistir ao filme de maneira muito analítica, o que me levou a considerar o roteiro a coisa mais relevante da obra. De qualquer forma é o roteiro mais sutil e inteligente que vi nos últimos tempos. Onde o que parece ser a maior trama da história, revela-se secundário. Assim como o que não se supunha revela-se a grande descoberta. Detalhes tão sensíveis como o porta-retratos virado para baixo, no móvel na casa de Benjamín, as cortinas sendo fechadas pelo viúvo da assassinada, quando este recebe a visita do oficial aposentado, ou a letra A emperrada da máquina de escrever. Detalhes que talvez passem despercebidos, mas que na conclusão da história, vê-se a intenção do inteligentíssimo Campanella. E tente não prender a respiração na sequência dos quinze minutos finais. Assisti a O Segredo na véspera da cerimônia do Oscar e lembro de ter expressado que ele merecia muito mais que a estatueta dourada. De fato, a obra de Juan José Campanella é para entrar para a história do cinema. E não só do argentino. Recomendadíssimo.

Pô estas...


Não dá pra competir com poetas. 2 semanas de twitter, seguindo quem não me segue, mas isso é um sentimento meu / 2 caras que eu gosto bastante e que sairam da lista de blogs ao lado, deixando mais pobre esta blogosfera que às vezes faz brotar água nos olhos / 2 anos da mais pura saudade de quem não volta mais (o show foi adiado) / 1 TV que não liga mais, mas só porque eu quero assim / 1 festa de aniversário que não fui, de um casal adorável, que faz parte do meu coração / 3 provas de amizades sinceras / 1 noite de reencontro pra entrar pra história / E a maior das constatações: Não dá pra competir com poetas. Eles esfregam o coração na sua cara.
– Post recuperado graças ao google reader. Valeu, Yuri.

Enquanto você dorme

Pego um vôo enquanto você dorme e rezo pra que não tenha teto e eu nunca consiga chegar. Poderia estar chovendo tanto enquanto você dorme que seria capaz de encher toda a cidade em pleno domingo de sol e feira. Dispersaria o cheiro forte de peixe e manjericão, mas levaria junto o seu perfume. Que ainda ficara nos lençóis. Enquanto você dorme eu posso atingir aquele ponto mais alto e inatingível daquela sua trilha feita em Brotas. Chegar tão perto, muito mais perto do que jamais poderia tentar. E velaria por seu sono com um olhar de cristão que queima na fogueira. Depois fecharia a porta com cuidado, e pés de meia desceria os quatrocentos e cinquenta e nunca degraus que me levariam para o mais longe que eu pudesse ir. Enquanto você dorme.

SET | The Misfits



– Photos by Frank Capa - Reno, 1961

Raduan

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo).

– Raduan Nassar em LAVOURA ARCAICA.

Hoje

ANDEI NA RUA SOB A MIRA DO FRANCO-ATIRADOR NO ALTO DO PRÉDIO DA MINHA EMPÁFIA.

Vale a vista


O lugar era muito alto. Um pequeno platô de pedra que terminava apontando para a imensidão do oceano lá embaixo. Ventava muito, mas a vista era deslumbrante. Não era uma subida difícil, apesar da altura. A maior parte do caminho era feita facilmente de carro. Depois uma breve caminhada por uma vegetação rasteira, exclusivamente verde e chegava-se enfim ao ponto rochoso onde eles um dia haviam dado o primeiro beijo. O primeiro de muitos, infindáveis beijos. Mas ali, naquele dia quase sem sol e de muito vento, não houvera nenhum beijo até então. Subiram até aquele lugar que costumavam chamar de seu, numa esperança talvez inconsciente de voltarem a ser o que haviam sido um dia. Felizes. Mas os dias não costumam voltar. E eles descobriam isso apenas agora, imaturos e jovens que ainda eram. Ele conhecia o lugar desde criança, quando costumava pescar com seu pai naquela praia. Aprendera com o velho que as duas principais regras de uma boa pescaria eram paciência e silêncio. Apesar do ímpeto que a idade lhe imprimia, ele aprendera a ser paciente. Calmo, até. Falava num tom baixo para não assustar os peixes e apreciava o silêncio. Mas ali, naquele rochedo à beira do oceano, onde o vento o fazia lacrimejar e quase arrancava o vestido amarelo de verão que ela usava, pesava o mais absoluto silêncio que ele jamais teria sido capaz. O suficiente para lhe dar todos os peixes de todo aquele mar, que lá embaixo continuava a sua luta secular de destruir as pedras que ainda ousavam lhe enfrentar. Mas era uma luta lenta, infinita. Apenas os estrondos desta luta ainda quebravam aquele silêncio, enquanto ela começava a se encolher de frio. Nos cabelos, um lenço longo e fino, que misturando-se aos fios loiros, voavam juntos, violentamente. Ela também lacrimejava. O vento, talvez. Instintivamente ele ensaiou um movimento para abraçá-la e protegê-la do frio, mas não o fez. Mesmo sem ouvir palavra, entendia que não devia. Ela talvez não quisesse. Ele talvez não quisesse realmente. Os olhos dela fixos no mar lá embaixo, que mudava do tom de verde para um azul muito escuro, aquela cor que o mar adquire quando a tarde já se aproxima do fim. Ao longe ele ouvia as vozes dos pescadores na praia. Começavam a ir embora. Caso contrário o silêncio ainda estaria também pelas areias. Mas era o seu silêncio que ele queria romper. Mais até que o dela, que não era absolutamente de quem não quer falar. Mas antes, de quem não quer dizer. Eram coisas difíceis de serem ditas. Era um momento em que talvez chegassem juntos a uma mesma conclusão. De que ali, naquele silêncio absoluto, tinham todas as palavras que precisavam. O silêncio falava por eles, mais definitivamente que qualquer outro verbo que pudessem exprimir. Ele entendia isso agora e pensava que ela também. Um certo alívio engatinhou dentro dele e sentiu um impulso incontrolável, movido por um carinho estupidamente maior do que todo aquele mar. E com toda suavidade de que era capaz, tocou com as pontas dos dedos os ombros dela, a pele arrepiada de frio, por baixo da fina alça amarela do vestido de verão. Eles não se olhavam, mas ouviu uma espécie de suspiro, como se ela também, subitamente se sentisse aliviada. Sorriram de leve os dois, sem que um visse o sorriso do outro. O vento repentinamente deu uma trégua. As nuvens abriram-se mais e o sol encontrando o mar, ensaiava o por do sol mais bonito que eles presenciariam ali, depois de tanto tempo. Ela não sentia mais frio, apenas não conseguia tirar os olhos daquele mar. E sem aviso inclinou lentamente a cabeça nos ombros dele, que procurou se ajeitar nas pedras, apoiando-se numa delas, solta, que o fez perder o equilíbrio, tombando para o lado e rolando despenhadeiro abaixo. Não houve tempo para nada e ela ainda olhava o mar, quando se deu conta do que acontecia. O vento soprou mais forte, levando no ar o terrível grito dela, assustando os pescadores lá embaixo.